A
ORIGEM DO MUNDO
“A origem do mundo”, de Courbet (*)
Sérgio Telles
O quadro “A Origem do mundo” tem uma história curiosa
à qual se acrescentou um novo capítulo semana passada. A tela foi pintada em
1866 por Courbet, a pedido de Khalil Bey, diplomata turco-egípcio e colecionador
de quadros eróticos, que a possuiu até o momento em que, arruinado pelo jogo,
teve sua coleção leiloada. Em 1889, o quadro foi encontrado num antiquário pelo
escritor francês Edmond de Goncourt e, posteriormente, comprado por um nobre
húngaro que o levou para Budapeste, onde escapou da pilhagem realizada pelas
tropas russas no final da Segunda Guerra. Trazido de volta a Paris, foi
comprado por Jacques Lacan, que o mantinha em sua casa de campo em
Guitrancourt, na qual o exibia ritualisticamente a seus convidados. Após a
morte de Lacan, a família cedeu o quadro ao Museu d’Orsay dentro das
negociações com o estado francês em torno de impostos referentes à transmissão
de herança.
“A origem do mundo” mostra os genitais femininos da
maneira mais crua possível. Vê-se um torso da mulher, os seios, o ventre, as
pernas afastadas, a frondosa cobertura pubiana e a vagina entreaberta. A
novidade recente é que teria sido encontrada a parte superior do quadro, que
exibe os ombros e a face da modelo, confirmando hipóteses anteriores que
afirmavam ser ela a irlandesa Joanna Hiffernan, que posava também para o grande
pintor Whistler, de quem fora companheira e que estaria envolvida afetivamente
com Courbet na ocasião em que o quadro estava sendo pintado.
Supondo a veracidade da descoberta, que ainda está em
discussão entre os especialistas, podemos conjecturar quem teria seccionado a
pintura e por que motivo. O quadro era tido como pornográfico e até muito
recentemente mantinha essa conotação. Não é então difícil imaginar que o
próprio pintor tenha resolvido mutilar sua obra com o intuito de proteger sua
modelo. Ainda em 2009, livros cujas capas o reproduziam foram confiscados pela
polícia em Portugal e páginas do Facebook que o exibiam foram retiradas do ar
em 2011. Não deixa de ser surpreendente
que, em função do noticiário, sua imagem tenha aparecido abertamente em todos
os jornais.
A trajetória do quadro, vindo dos porões da
pornografia para a consagração definitiva nos salões do Museu d’Orsay mostra
como a apreciação de uma obra está inevitavelmente atrelada aos valores
vigentes no tempo e no lugar de seu surgimento.
Contrariando a representação idealizada do nu
feminino, Courbet o apresenta de forma realista. Consta que o grande crítico de
arte e ensaísta vitoriano John Ruskin, reverenciado por Proust, jamais superou
o choque ocorrido no leito nupcial, ao se deparar com as características
hirsutas de sua mulher, tão distantes da lisa e glabra estatuária clássica que
lhe era familiar, acontecimento de consequências desastrosas para seu
casamento, jamais consumado fisicamente. Mais recentemente, no final dos anos
60, o editor da “Penthouse”, Bob Guccione, causou furor ao mostrar esse detalhe
da anatomia feminina, até então pudicamente evitado até mesmo por sua rival, a
revista “Playboy” de Hugh Hefner.
Atualmente a forma de dispor o velo pubiano parece
estar num outro estágio, evidenciando que, a cada época, o erotismo desenvolve
novas estratégias de sedução e formas de acicatar o desejo. Se Courbet, fiel
aos costumes de seu tempo, mostra o genital feminino envolto em sua pilosidade
natural, constata-se como a moda atual é diferente, na medida em que a
depilação é a regra para as mulheres e até mesmo para os homens. Nos dias de
hoje, Ruskin não teria tido problemas em sua lua de mel.
As transformações na maneira como a sociedade acolheu
“A origem do mundo” mostra como a arte, enfrentando a censura e os preconceitos
da época, luta para representar e expor o que é considerado inaceitável,
proibido, não representável. Desta forma ela está permanentemente ampliando os
limites e as fronteiras daquilo que é permitido pela moral e os costumes.
Trata-se de um serviço inestimável que a arte presta
ao conhecimento. Na medida em que simboliza, representa e põe em circulação
conteúdos até então excluídos, torna possível o pensar e o refletir sobre eles.
Com isso, os aspectos mistificadores, idealizadores, ideológicos – ou seja, a
dimensão fantasiosa que acompanha estes conteúdos quando forçados a medrar no
escuro – são expostos à luz, o que lhes
retira a conotação assustadora, devolve-lhes a real dimensão e a possibilidade
de um tratamento objetivo adequado.
No fundo, estamos falando da liberdade de expressão. O
estado tem o dever de proteger os cidadãos e neste sentido, deve exercer a
censura (aqui entendida lato censo, como o poder de reprimir e punir) para
limitar os impulsos agressivos e sexuais que nos são próprios e que precisam
ser coibidos para garantir a vida em sociedade. Mas o exercício da censura é
complicado, pois o estado tem seus próprios interesses, que nem sempre
coincidem com os da sociedade que deveria representar. Por isso esta deve estar sempre atenta ao poder do
estado, especialmente no que diz respeito às tentativas de reprimir a livre
manifestação de opinião.
Pornografia ou arte, o quadro de Courbet mostra como a
representação explícita dos genitais mantém inalterado um efeito perturbador
sobre nós, como algo arcaico vindo de tempos imemoriais que nos atinge
profundamente, sem que possamos evitá-lo.
Ela evoca, sim, a “origem do mundo”, o mistério da vida, o enigma da
diferença sexual cujo impacto determinante ocorrido na infância continuará para
sempre repercutindo em nossas existências.
A propósito da diferença sexual, em 1989, a artista
francesa Orlan, conhecida por suas incursões na body art e outras vertentes da vanguarda, criou sua versão do
quadro de Courbet, na qual mostra um torso masculino com o falo em ereção,
intitulando-o, significativamente, como “A origem da guerra”. Como tudo que
Orlan faz, o quadro e o título convidam à polêmica. Mais uma vez traz à tona a questão do que deve
ser exposto e do que deve ser ocultado. Ao atribuir às mulheres o poder
criativo e delegar aos homens a carga da destrutividade, para tanto invertendo
o significado convencional do falo enquanto símbolo de fertilidade, Orlan toma uma posição política
de denúncia contra a violência machista ainda vigente mesmo nas sociedades mais
evoluídas.
(*) Versão ampliada de artigo publicado no Caderno 2
do jornal “O Estado de São Paulo” em
16/02/2013
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