O cevado, tendo mais de um ano passa-se-lhe o tempo. As vacas, essas são sagradas na lavoeira – parece que estou a vê-las com os seus enormes e meigos olhos de bênção. O carneiro, coitado, uma simples navalhada na nuca e basta. A galinha, só naquelas alturas próprias. A cozinha de nabos, cujas propositadas sobras servem para fazer umas papas com farinha de milho no dia seguinte. A tábua da broa recheada é a garantia semanal, a tranca, o fechal da barriga. O chambaril atulhado de choiriças e negras, afiança uma semana gorda, em cheio, antes de ser colocado o adobo em cima da tampa da salgadeira por quarenta dias. Todo esse longo tempo sem poder assar as dependurezas do fumeiro, de forma a não se libertar o cheiro até ao nariz de vizinhos beatos, invejosos e linguarudos, dos profundos e pecaminosos aromas. As marinhas, ambas as duas, pariram há pouco tempo. Os seus vitelos já comem um pouco de palha, e o leite que mamam é só para manter o mojo das vacas com pojadura. As crianças, meus filhos, crescem fortes e sem maleitas, pois já por duas vezes, a conselho de mulher santa, tinha ido buscar o manto da Nossa Senhora d’Atocha, para o colocar sobre a enorme e descida barriga da minha mulher aquando da paridura. Ela, probe, deitada na esteira ao longo do borralho, segurava o peão da chaminé com as mãos acima da cabeça, enquanto os preparativos do alguidar com auga morna e panos brancos evoluíam em ritmo experimentado. Não fosse a ajuda assinalada, as Avé-Marias e as orações que só a Ti Maria Santa sabe para momentos esperados como este, de aparar as crianças. A mim cabia-me a tarefa de arranjar a cinza do bunho para curar o umbigo dos recém-nascidos.
Os filhos nasciam bastinhos como os dedos das mãos, e a vida lá ia desandando. Olhem bem para o que nos havia de acontecer: de um dia para o outro, o leite da castanha secou, e nem uma gabelada de erva tenra, colhida com especial carinho na mota da vala, refez o seu estado de espírito. De dia para dia, ressequia o animal, e de macho, nem vê-lo. Talvez fosse das camadas de geada, tudo branco, tudo ressequido, em volta dos currais junto à estrumeira e ao telheiro da lenha. Nem as árvores despidas, nuas, com seus troncos robustos e tesos, lhes transmitiam alento, força, vitalidade.
Foi então que se fez luz na mente da minha mulher, na fé que ela nutria pelo Santanton, que era mesmo santo com poderes milagreiros, diziam… e eu que nem sou homem de muita fé em rezas e benzeduras, mas lá marchei também, ao lado dela para a missa de domingo. Com passada larga, ia contando pelo caminho para quem queria ouvir, a usada história do Santo grande que, ao não cumprir o milagre contratado, fugiu, e deixou em seu lugar, um outro igual, mas de menor tamanho. Depois disseram que era filho dele… a mulher reclamou: até fazes pecado home, e continuou falar e a andar com a barriga feita num tambor, espero que nada aconteça de mal ao anjinho que trago aqui á espera da horinha de Deus.
Já trintei, faz algum tempo, e a prole vai aumentando com as necessidades de um homem a terem de ser refreadas, mesmo com as partes inchadas só de um home alembrar-se. Cá por mim, não estou, para me assujeitar aos risos da Maria da Lenha, essa mesma, que às vezes, percorre pinhais à procura de home quando lhe dá a mudança de tempo. A lembrança de cobrir vem à cabeça, e a Maria lá vai fogosa, pinhais adentro, a oferecer-se como quem não quer a coisa, mas ao mesmo tempo esquisita na escolha de macho, pois nem todos podiam dizer que usavam e abusavam dela. Abusar, isto é, pois diz quem ouviu, que ela ululava radiante, guinchava desabrida na cova do cepo bem atrás da moiteira. Daquela vez, ela estava a lavar-se na represa do moinho do Giraldo, vi-a eu sem mais ninguém à volta, ela de mamas ao léu, com aquelas tetas repimpadas, ainda estou para saber que artes tinha ela para nunca emprenhar. Era o tempo de um Maio bem entrado, com um cheiro roubaqueiro que emanava das águas branquinhas da represa. No fundo de areia branca, um cardume de roubacos cirandava a um ritmo de dança marcado pelos reflexos da auga. A memória até me pedia o mergulho daquele tempo de cachopo e rapazola. Sentir o barulho borbulhante da auga nos ouvidos, o cheiro lavado e escorrido sobre a face, quando a mulher do Giraldo corria atrás de nós, em bando, desavergonhados, cães fracos, alguns nus e outro já com um panadão cheio de cabelos, dizia ela. Ao Giraldo chamávamos nós o banheiro. Lá vem o banheiro, gritávamos nós quando nos estios de Julho e Agosto ele deambulava pelo moinho só em ceroulas. Banheiro trazia ele escrito nas ceroulas, letras elaboradas pelas cagadelas de pulga. As silvas começavam a subir as paredes do moinho, a quererem chega-lhe aos beirais. O moinho estava a envelhecer a par com o dono. Mas deixem-me voltar um pouco atrás. Só uma simples troca de olhares, foi o suficiente para que a respiração ofegante da Maria da Lenha rebentasse em grunhidos e odores de orgasmo… Só de lembrar-me do seu riso de prazer, a cabeça voltada para trás, os cabelos desgrenhados, enquanto espanejava a rata na represa do moinho… E depois, a Maria da Lenha, apesar da sabedoria do acto, estava a perder o viçoso da juventude que eu conheci há uns anos. Lembro-me dela, uma semana antes de assentar praça em Lisboa, era assim uma coisinha tenrinha, sedosa como veludo. À flor da pele, uma fibra de força e músculo... Mas daquela vez, no moinho do Giraldo, foi um tudo nada diferente, ou talvez fosse natural, ou fosse a arte dela, ou fosse do peito alevantado, ou fosse da ansiedade ou da experiência dela, a tremer, a soluçar... Na noite seguinte, a caminho do palheiro junto ao monte das agulhas, por trás do curral do porco, tinha esgalhado uma, sob o manto do luar.
Nem de propósito, o senhor padre na missa de domingo, depois de gastar o latim em longas orações e rezas, falou sobre os pecados da carne: com voz doce do licor, de muito boas famas e proveitos, segundo me contou o meu compadre da Bairrada. Contou-me esse meu compadre, que não é home de me mentir, que esse mesmo senhor abade, antes de vir para cá dizer a missa, já deixou a governanta em casa alugada e o afilhado a estudar no colégio. Disse ainda o meu compadre, que o dito reverendo, ainda regressa, muitas vezes lá à vila, a casa dela, para lhe dar a bênção. E aproveita estas visitas para cumprimentar os antigos paroquianos mais dados à Igreja, e conta-se também, que uma vez, ao pregar nas festas do S. João, os mordomos tiveram que o tirar do púlpito, à força, pois nem ele acabava a faladura, nem a procissão saía, nem a Banda Filarmónica recebia o dinheiro, nem os foguetes rebentavam. O jazo dos Melros aguardava já a sua vez, e até as moças mais interessadas no profano que no divino… E o padre, qual pipa de vinho, não se calava, e porque torna, e porque deixa, só pregava: Bairrada linda Bairrada, terra do vinho e do leitão, que Deus te abençoe. O senhor padre, ainda sem terminar, lembrou ainda, a ida do Manel Chancas para o Brasil, ele que ainda lá está, conta-se que tem por lá mulher e filhos, pois a de cá já a abandonou ele, mais as terras e a casa. Ela foi para a casa da mãe, louvado seja o Senhor, no que deram os maus exemplos. Terminou.
Por fim ajoelhámos, a mulher e eu, em frente do pequeno Santanton, e lá repeti os gestos das benzeduras que a mulher ia fazendo, reza com fé, home, reza com fé corisco negro que serás atendido. Deixo-me levar, mais uma vez, na lembrança da história Santo-filho, o ele ter ficado no lugar do fugitivo Santo-pai, interrompido pelo nome do pai e do filho e esprito santoame. Final da mulher. Imito-a aliviado, pois tinha acabado a reza pedinchona.
Ao chegar a casa de tarde, cansado, ainda com uma frincha de sol a esgueirar-se sobre o telhado, a querer esconder-se entre a restea da figueira e o muro do pátio, enquanto na cozinha se ouvia o ressoar dos tachos para a ceia, fui-me até ao curral, abri a porta meio desconfiado, levantei os olhos com desalento e ponho-me a experimentar a vaca: Ió, ió, ió, ió, ió. Cela-se a castanha a prepara-se já para levar o salto do boi. E eu espantado com o preparo do animal. Mulher, anda cá, anda cá mulher, que afinal a vaca está bem, o Santanton cumpriu o milagre, o corisco está aluada de todo! A mulher veio, atrelado o rancho de filhos para verem o milagre.
Fiquei a pensar que o raio do Santanton era mesmo milagreiro. Ele que lá está no alto, sobre a peanha, feito de um só tronco de jacarandá, o monge medieval com uma corda e uma vara, com de resposta rápida e sabedora das maleitas do gado, ancoradoiro das gentes gandaresas. Famosas glórias foram ouvidas, em tempos, sobre o Santo alvitar do alto púlpito.
Sermões eloquentes de um pregador crúzio, de faces alvas e hábito ornado a branco, até que, a dada altura, nunca mais foi visto por estas bandas o dito “missionário”, chamado a outras pregações, depois de uma cansadela à frente de uma forquilha empunhada por mãos calejadas, de cabeça tresloucada, por ter chamado novamente à comunhão, confissão, missas diárias, aquelas faces coradas sob o lenço chinês e cinta cingida nos bem formados quadris.
Afinal o grande Santanton, o pai deste Santanton, que mora no santuário da Nossa Senhora d’Atocha, sempre fugiu. Refugiou-se em La Foz de Morcin, nas Astúrias. Por estas planuras da Gândara, se em vez de areia houvesse rocha firme, poder-se-ia descortinar seus rastos, talvez, tal qual os arqueólogos, ainda hoje, vêem os vestígios de dinossauros…
Escoural, 25 de Março de 2006,
Manuel Ribeiro
6 comentários:
andando a navegar como sempre aqui passei, porque gosto dos escritos
Vou voltar
Saudações
Caro Manel
nunca me enganaste. Um artista nunca é artista numa só área. E quem dedilha as cordas da guitarra tão bem só poderia dedilhar as palavras do mesmo modo. O Idalécio que se cuide. A concorrência aproxima-se do lado do Escoiral!
Um abraço
Fatiminha
Amigo Manel:
Parabéns, muitos parabéns por esta magnífica prosa. Gostei deveras de o ler, tem verdade e beleza, arte narrativa e vida vivida. Mas não foi a minha primeira vez... Portanto, tem razão aquele amigo: Idalécio, cuida-te, pá! A concorrência está a medrar-te à porta! E, Manel, continue. Continue a escrever e a vibrar nas cordas da guitarra!
Abraço, Arsénio.
Caríssimos,
Este "conto" teve uma última revisão do próprio Idalécio.
É que de tanto andar atrás do coxo acabei a coxear como ele, uma simples e barata imitação do andar.
Ribeiro
Na última ceia da confraria falaste do Santanton e do seu milagre! Curioso QB fui alservar! Gostei do que li! O teu texto é um dedilhar de guitarra portuguesa ao passar melancolicamente por terras gandaresas! Eu, que não acreditava em milagres, passei a acreditar! Santanton deve ter tido um orgasmo e dele jorrou o esperma que criou um novo artista gandarês!
Parabéns!
Um confrade AMIGO
Meu caro amigo Ribeiro,
Ainda não tive tempo de ler o conto todo mas deve estar simplesmente genial, pelo que li até agora pois tenho de sair, ir a mais uma reunião das centenas que já houve este ano lectivo... Ao ler aquele português (será mesmo português?), lembro-me do Aquilino, do Eça, do Saramago, e claro daquele dialecto que se fala aí pelas Gândaras... Apesar de gandarês, não consigo, por vezes, acompanhar o sentido de todas as palavras. Já nem me lembrava de algumas. Enfim, a cidade lá vai fazendo os seus estragos.
Logo à noite, ao serão, prometo ler tudo até ao fim.
Um abraço.
Luís Ferreira
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