segunda-feira, junho 04, 2007

Desvio

Cada vez mais aprecio a escrita de O'Neill, neste país relativo.
O País Relativo
País por conhecer, por escrever, por ler...
País purista a prosear bonito,
a versajar tão chique e tão púdico,
enquanto a língua portuguesa se vai rindo,
galhofeira, comigo.
País que me pede livros andejantes com o dedo, hirto, a correr as estantes
País engravatado todo o ano
e a assoar-se na gravata por engano
País onde qualquer palerma diz,
a afastar do busílis o nariz:
-Não, não é para mim este país!
Mas quem é que bàsquetica sem lavar
o sovaco que lhe dá o ar?
Entreicheiram-se, hostis, os mil narizes
que há neste país.
País do cibinho mastigado devagarinho.
País amador do rapapé,
do meter butes e do parlapié,
que se espaneja, cobertas as miúdas,
e as desleixa quando já ventrudas.
O incrível país da minha tia,
trémulo de bondade e de aletria.
Moroso país da surda cólera,
do repente que quer ser feliz.
Já sabemos, país, que és um homenzinho...
País tunante que diz que passa a vida a meter entre parêntesis a cedilha.
A damisela passeiano país da alcateia,
tão exterior a si mesma
que não é senão a fome
com que este país a come.
País do eufemismo, à morte dia a dia
pergunta mesureiro: - Como vai a vida?
País dos gigantones que passeiam
a importância e o papelão,
inaugurando esguichos no engonçodo gesto e do chavão.
E há ainda quem os ouça, quem os leia,
lhes agradeça a fontanária ideia!
Corre, boleada, pelo azul,
a frota de nuvens do país.
País desconfiado a reolhar por cima
dum ombro que, com razão, duvida.
Este país que viaja a meu lado,
vai transido, mas transitorisado.
Nhurro país que nunca se desdiz.
Cedilhado o cê, país, não te revejas
na cedilha, que a palavra urge
Este país, enquanto se alivia,
manda-nos à mãe, à irmã, à tia,
a nós e à tirania,
sem perder tempo nem caligrafia.
Nesta mosquito
maquiaque é a vida,
ó país,
que parede comprida!
A Santa Paciência, país, a tua padroeira,
já perde a paciência à nossa cabeceira.
País pobrete e nada alegrete,
baú fechado com um aloquete,
que entre dois sudários não contém senão
a triste maçã do coração.
Que Santa Sulipanta nos conforte
na má vida, país, na boa morte!
País de troncas e delongas ao telefone
com mil cavilhas para cada nome.
De ramona, país, que de viagens
tens, tão contrafeito...
Embezerra país, que bem mereces,
prepara, no mutismo, teus efes e teus erres.
Desaninhada a perdiz,
não a discutas, país!
Espirra-lhe a morte pra cima
com os dois canos do nariz!
Um país maluco de andorinhas
resourando as nossas cabecinhas
de enfermiços meninos, roda vida
em que entrássemos de corpo e alegria!
Estrela trepa trepa pelo vento fagueiro
e ao país que te espreita, vê lá se o vês inteiro.
Hexágono de papel que o meu pai pôs no ar,
já o passo a meu filho, cansado de o olhar...
No sumapau seboso da terceira,
contigo viajei, ó país por lavar,
aturei-te o arroto, o pivete, a coceira,
a conversa pancrária e o jeito alvar.
Senhor do meu nariz, franzi-te a sobrancelha;
entornado de sono, resvaste pra mim.
Mas também me ofereceste a cordial botelha,
empinada que foi, tal e qual clarim!
(Alexandre O'Neill)

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