sexta-feira, março 27, 2015

Que lindo ranchinho

Com a devida vénia, artigo de Manuel Farias https://www.facebook.com/manuel.farias.904?fref=nf

O meu artigo mensal no Jornal FOLCLORE. Ajudem-me a salvar a cultura tradicional do povo português, não fazendo confusão entre "ranchos" e folclore. São coisas tão diferentes que chegam a ser opostas.
"TRAJAR À RANCHO
Em Portugal existem duas histórias de ranchos; uma é real e enraizada, outra é mítica e presumida. A primeira diz-nos que o “rancho” é uma expressão do mundo rural português, aplicada quando se juntavam grupos de pessoas para se deslocaram a pé a locais onde havia trabalho, sabendo que iriam ser alimentados com uma iguaria simples, pobre e autossuficiente a que também se chamava “rancho”, ou para cumprir obrigações religiosas em locais de romaria, aproveitando para folgar e matar a sua imensa fome de diversão… esta história de ranchos é comum a todos os países da Europa, embora tenha ocorrido em épocas diferentes, de acordo com a instalação da revolução industrial e do seu impacto económico, social e cultural.
A segunda história de ranchos é contemporânea e exclusiva de Portugal; observada à distância, apresenta-se surreal, breve e manipulada, ao contrário da primeira que foi factual, espontânea e continuada por muitas gerações. Estes “ranchos” dizem respeito a grupos de pessoas, reunidos por encomenda e com a finalidade de dançar de modo alinhado e certinho, em cima de um palco ou noutro local, com a única obrigação de divertir os assistentes. Esta história começa na década de vinte do século passado e explodiu nas décadas seguintes por necessidade e incentivo do regime fascista do Estado Novo. Por este motivo, esta segunda história de ranchos não existe em nenhum outro país da Europa, salvo os que foram criados pela diáspora portuguesa.
Nas primeiras décadas do século XX, no mundo rural português, o povo vivia com os mesmos padrões comportamentais e dependia dos mesmos saberes tradicionais que as gerações anteriores cultivaram e aperfeiçoaram. Nomeadamente, no que respeita ao trajar com simplicidade, pobreza e autossuficiência; todavia, os ranchos organizados para subir ao palco e fazer a recepção a governantes republicanos e outras individualidades que se deslocavam à província, foram vestidos com indumentárias novas e exuberantes, bem mais garridas e enfeitadas do que as que as mesmas pessoas usavam no seu cotidiano. Ou seja, foram vestidas à rancho.
Logo depois, os arquitectos do Estado Novo ainda foram mais longe e desenharam fardamentos para os ranchos, chamando-lhes trajos regionais; nessa onda, as mulheres do Minho (simples, pobres e autossuficientes) foram apresentadas com o traje à vianesa (composto, rico e encomendado) e por aí abaixo, até ao Algarve, o SPN – Secretariado de Propaganda Nacional escreveu uma história nova para o povo português, vestido à rancho, na tentativa de matar o trajar simples, pobre e autossuficiente… mas fortíssimo pela simplicidade, peculiar na auto-suficiência e com aspectos de identidade únicos derivados da criatividade que a pobreza incita. Este trajar autêntico foi afastado dos ranchos, mas mais tarde foi retomado pelos grupos de folclore.
O século XX terminou com os ranchos novos a recolher o trajar nos ranchos antigos, a chamar de modo impróprio e abusivo “folclore” a toda esta criação e pronto… chegámos ao século XXI.
Hoje, onde poderá ser revisitado o folclore de Portugal, no que respeita ao trajar simples, pobre e autossuficiente, que agasalhou e enfeitou as mulheres e os homens de Portugal, bem como as suas crianças, antes de aparecerem os ranchos? Certamente nos grupos de folclore que não adoptam o conceito de rancho e se sentem insultados quando são tratados desse modo.
Os grupos de folclore, em Portugal são confrontados com dificuldades acrescidas, que os seus congéneres de Espanha, França, Itália, Alemanha, Holanda e todos os demais países europeus não sofrem; para além da simples dificuldade de existir e produzir resultados, os grupos de folclore portugueses debatem-se com a dificuldade de investigar por detrás de uma história virtual, densa e espampanante, tantas vezes repetida que muitos já a tomam por verdadeira e que substituiu a história real do trajar simples, pobre e autossuficiente dos portugueses, que ainda ocorria de modo generalizado e espontâneo há apenas três ou quatro gerações.
Quem se quiser vestir à rancho pode fazê-lo, cantando um hino à liberdade de expressão e à tolerância que devemos cultivar como expoente de cidadania, porque afinal o carnaval também pode ser quando um homem quiser. No que respeita ao meu respeito pela história e pelos factos, prefiro que me digam “…oh pá!... diz lá o que queres!... és um dançarino! Deixa-te de folclores!”, do que o que ouvi recentemente: “Bi-te há dias… tabas bustido à raintcho”.

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