Com a devida vénia, artigo de Manuel Farias https://www.facebook.com/manuel.farias.904?fref=nf
O meu artigo mensal no Jornal FOLCLORE. Ajudem-me a salvar a cultura
tradicional do povo português, não fazendo confusão entre "ranchos" e
folclore. São coisas tão diferentes que chegam a ser opostas.
"TRAJAR À RANCHO
Em Portugal existem duas histórias de ranchos;
uma é real e enraizada, outra é mítica e presumida. A primeira diz-nos que o
“rancho” é uma expressão do mundo rural português, aplicada quando se juntavam
grupos de pessoas para se deslocaram a pé a locais onde havia trabalho, sabendo
que iriam ser alimentados com uma iguaria simples, pobre e autossuficiente a
que também se chamava “rancho”, ou para cumprir obrigações religiosas em locais
de romaria, aproveitando para folgar e matar a sua imensa fome de diversão…
esta história de ranchos é comum a todos os países da Europa, embora tenha
ocorrido em épocas diferentes, de acordo com a instalação da revolução
industrial e do seu impacto económico, social e cultural.
A segunda história de ranchos é
contemporânea e exclusiva de Portugal; observada à distância, apresenta-se
surreal, breve e manipulada, ao contrário da primeira que foi factual,
espontânea e continuada por muitas gerações. Estes “ranchos” dizem respeito a
grupos de pessoas, reunidos por encomenda e com a finalidade de dançar de modo
alinhado e certinho, em cima de um palco ou noutro local, com a única obrigação
de divertir os assistentes. Esta história começa na década de vinte do século
passado e explodiu nas décadas seguintes por necessidade e incentivo do regime
fascista do Estado Novo. Por este motivo, esta segunda história de ranchos não
existe em nenhum outro país da Europa, salvo os que foram criados pela diáspora
portuguesa.
Nas primeiras décadas do século XX, no
mundo rural português, o povo vivia com os mesmos padrões comportamentais e
dependia dos mesmos saberes tradicionais que as gerações anteriores cultivaram
e aperfeiçoaram. Nomeadamente, no que respeita ao trajar com simplicidade,
pobreza e autossuficiência; todavia, os ranchos organizados para subir ao palco
e fazer a recepção a governantes republicanos e outras individualidades que se
deslocavam à província, foram vestidos com indumentárias novas e exuberantes,
bem mais garridas e enfeitadas do que as que as mesmas pessoas usavam no seu
cotidiano. Ou seja, foram vestidas à rancho.
Logo depois, os arquitectos do Estado
Novo ainda foram mais longe e desenharam fardamentos para os ranchos,
chamando-lhes trajos regionais; nessa onda, as mulheres do Minho (simples,
pobres e autossuficientes) foram apresentadas com o traje à vianesa (composto,
rico e encomendado) e por aí abaixo, até ao Algarve, o SPN – Secretariado de
Propaganda Nacional escreveu uma história nova para o povo português, vestido à
rancho, na tentativa de matar o trajar simples, pobre e autossuficiente… mas
fortíssimo pela simplicidade, peculiar na auto-suficiência e com aspectos de
identidade únicos derivados da criatividade que a pobreza incita. Este trajar
autêntico foi afastado dos ranchos, mas mais tarde foi retomado pelos grupos de
folclore.
O século XX terminou com os ranchos
novos a recolher o trajar nos ranchos antigos, a chamar de modo impróprio e
abusivo “folclore” a toda esta criação e pronto… chegámos ao século XXI.
Hoje, onde poderá ser revisitado o
folclore de Portugal, no que respeita ao trajar simples, pobre e
autossuficiente, que agasalhou e enfeitou as mulheres e os homens de Portugal,
bem como as suas crianças, antes de aparecerem os ranchos? Certamente nos
grupos de folclore que não adoptam o conceito de rancho e se sentem insultados
quando são tratados desse modo.
Os grupos de folclore, em Portugal são
confrontados com dificuldades acrescidas, que os seus congéneres de Espanha,
França, Itália, Alemanha, Holanda e todos os demais países europeus não sofrem;
para além da simples dificuldade de existir e produzir resultados, os grupos de
folclore portugueses debatem-se com a dificuldade de investigar por detrás de
uma história virtual, densa e espampanante, tantas vezes repetida que muitos já
a tomam por verdadeira e que substituiu a história real do trajar simples,
pobre e autossuficiente dos portugueses, que ainda ocorria de modo generalizado
e espontâneo há apenas três ou quatro gerações.
Quem se quiser vestir
à rancho pode fazê-lo, cantando um hino à liberdade de expressão e à tolerância
que devemos cultivar como expoente de cidadania, porque afinal o carnaval
também pode ser quando um homem quiser. No que respeita ao meu respeito pela
história e pelos factos, prefiro que me digam “…oh pá!... diz lá o que
queres!... és um dançarino! Deixa-te de folclores!”, do que o que ouvi
recentemente: “Bi-te há dias… tabas bustido à raintcho”.
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