Hoje, as nuvens altas vão desgarradas e com a cor de
trovoada. Coam a luz do Sol, mortiço, que se deixa levar, ele também, no
arrasto do vento fraco. Tudo parado. Tudo está quieto na esperança de que o ar
venha a ser lavado. Esta noite, a Lua fugirá para as Bandas do Mar a uma
velocidade vertiginosa e arrepiante, enquanto a memória vai ficando espalhada,
a esmo, entre os grãos da areia.
«Sabes o que me lembra este céu? Mais ou menos: a guerra dos astros. Tal e qual. A guerra dos mundos. Um sol maléfico, que tenta destruir a maquete, e sete planetas menores que tentam defendê-la.» [Finisterra, Carlos de Oliveira]
segunda-feira, abril 15, 2024
Os Filhos da Areia (1)
O Gabinete do Ódio está montado
O Gabinete do Ódio está montado, e trabalha na normalização da linguagem do elementos do rebanho.
Alguém afirmou que nas guerras a primeira vítima é a verdade.
Alguém afirmou que nas guerras a primeira vítima é a verdade.
segunda-feira, abril 08, 2024
25 De abril de 1974,
25 De abril de 1974,
um ponto marcante na minha juventude.
1. Declaração
Nenhuma leitura figurada do passado o
altera, e que só uma pessoa alienada e ignorante vive em função da sua crença.
Mais acrescento que a realidade de
cada momento é a circunstância provisória dos opostos necessários, e que tudo o
que eu aqui escrevo ou digo, é feito por uma boa razão: é o começar de novo.
Há muita coisa que eu não sei, mas
gostaria de saber.
Quero deixar claro que esta apresentação
é o mais fiel possível à minha memória, onde me esforcei, quanto pude, a
eliminar retroprojeções ou revisionismos temporais.
2. 1973, Setembro, 14 anos, quase a completar 15 no mês seguinte.
Matriculado na Escola Industrial e
Comercial da Figueira da Foz, no 1º ano do Curso Complementar de Mecanotecnia, tendo
completado o Curso Geral de Mecânica na Escola Industrial de Cantanhede.
Saí do Escoural da Tocha, aldeia
perdida entre pinhais, no fim do mundo, sem estradas onde pudesse transitar com
facilidade um carro de praça, sem luz elétrica, água canalizada, claro que sem
televisão, mas com um rádio a pilhas de marca Siera, e rumei à cidade da Figueira da Foz das ruas pavimentadas,
das torneiras com água, dos automóveis, dos carros de cavalos a transportar
mercadorias chegadas à estação do comboio, da luz a rodos e do cheiro a maresia
que emanava as docas do porto das traineiras e dos barcos da pesca, em frente
das praças Velha e Fernandes Thomaz.
O meu pequeno quarto era na Rua S.
João de Deus, no Sobe-e-desce, em
frente ao Hospital Velho, o hospital da Gala aguardava inauguração, entre dois
quartéis militares: O C.I.C.A. 2, ao lado da Escola Industrial, onde se
formavam todos os militares condutores auto para a guerra do Ultramar, e o
Regimento de Artilharia, hoje Quartel da GNR.
No Sobe-e-desce funcionava um café que tinha só empregadas de servir à
mesa. O outro, mais famoso com empregadas a servir os clientes, era na rua da
República, a famosa Vimar. Chamo a atenção que a prostituição não existia, pois
o seu exercício tinha sido proibido pelo decreto-lei Nº 44579, que entrou em
vigor a 1 de janeiro de 1963.
Antes de rumar à Figueira da Foz,
as músicas que eu ouvia eram as do rádio a pilhas: as dos festivais da canção,
e os muitos fados debitados, tais como os do António Mourão e Aida de Castro,
que me recorde neste momento, e outros.
2. No verão do ido de 1973,
no Escoural, comecei a ouvir umas músicas novas que passavam na rádio, umas
em português e outras em francês. Destas últimas pouco ou nada entendia das
palavras, mas gostava muito da melodia: Jacques Brel e Georges Brassens. Este último
toca viola como eu imaginava e queria vir a tocar um dia. Também em Português
um tal José Mário Branco cantava um soneto de Camões Mudam-se os Tempos, Mudam-se as
Vontades e Sérgio Godinho com a cantiga É Entrar Senhorias Para Ver o que
Cá se Passa.
Nesse mesmo verão, li os livros da coleção RTP, Jubiabá de Jorge Amado e
o Suave
Milagre e Outras Páginas de
Eça de Queirós, comprados na Hortícola de Cantanhede.
4. Já
na Figueira da Foz,
fins de Setembro, início de Outubro, via o telejornal no aparelho de
televisão com um napperon em
cima.
Notícias de um Golpe de Estado no
Chile com imagens de um general de bigode fino de nome Pinochet.
A primeira ministra israelita Golda Meir e um senhor americano de
testa longa, chamado Henry Kissinger da
guerra do Yom Kipur. Na RTP única, os israelitas eram os maiores, os bons e os
outros que eu nem sabia quem eram, eram os índios maus dos livros de cowboys.
Das notícias nacionais decorria uma
campanha eleitoral para a Assembleia
Nacional. O slogan era Evolução na Continuidade com os salões
das casas do Povo cheias de homens a baterem muitas palmas a discursos
incompreensíveis para mim.
As eleições de 23 de Outubro de
1973 decorreram com o resultado previsto.
Exemplo: no Distrito de Coimbra a lista A teve 86 380 votos dos 86 384 votantes
e alista B recebeu zero votos. Uma vitória por 99,99%.
Do Ultramar (Angola, Moçambique e Guiné) víamos as
reportagens onde os soldados, um a um, enviavam mensagens de Feliz Natal e um Ano Novo cheio de prosperidades
e algumas vezes mensagens de Feliz
Natal e um Ano Novo cheio de propriedades.
Na frente da Escola Industrial
existia um estabelecimento comercial que tinha uma Jukebox que debitava as
músicas do Festival da Canção, José Cid
e Quarteto 1111.
Os rapazes entravam na Escola por
um portão e as meninas por outro. Os recreios eram separados.
Na espera da paragem da camioneta
da carreira para as Alhadas, Maiorca e Montemor, que se situava na Praça Velha,
existia uma loja de eletrodomésticos que vendia discos. Na montra um aquecedor elétrico
com uma imagem de um toro a arder que imitava labaredas quando ligado. Uma capa
do disco do Good By Yellow Brick Road, com Helton John de óculos coloridos e sapatos de tacão
alto como a querer iniciar o caminho dos tijolos amarelos desenhado numa
parede. As miúdas adoravam a música. O dono da loja colocava o disco a tocar
até à exaustão. Outras vezes tocava Cat Stevens, Bob Dilon e o Angie dos Roling Stones.
Não entendíamos as letras das
canções, mas trocávamos olhares.
No início da Primavera soubemos no
próprio dia, 16 de Março, do Levantamento das Caldas da Rainha.
A visita da Brigada do Reumático
a Marcelo Caetano, presidente do Conselho, e a sua Conversa em Família na
RTP, eram comentadas entre nós e com alguns professores.
5. 25 de Abril de 1974, quinta-feira,
a aula de Matemática tinha começado às 08:00 como habitual. Da chamada só
faltava o Vitor Oliveira.
Estávamos a estudar limites de
funções, quando o Vitor entrou de rompante na sala com um rádio transístor
ligado, aos gritos: professora,
professora, é um golpe de estado.
À minha mente vieram as notícias
do tal Pinochet do Chile. A turma era constituída por rapazes, já perto dos 20
anos com a espada da guerra sobre a cabeça, e o colega João Belo já tinha de lá
vindo. Tinha 27 anos e não falava sobre o assunto.
Ficamos na sala a aguardar, quase
todos a ouvir o rádio transístor, os comunicados das Forças Armadas. No final
da manhã, o Diretor da Escola, o professor Coelho, entrou na sala e disse que
as aulas estavam suspensas, que voltássemos amanhã.
Descemos a rua do posto da PSP, em direção à
Praça Velha. O Borges, que estava à espera de ser chamado para a Tropa, começou
a cantar a Grândola Vila Morena.
Foi a primeira vez que ouvi a cantiga que me
ficou no ouvido.
Escoural, 05 de abril de 2024