quarta-feira, março 08, 2023

Misoginia, uma história com quase 2500 anos

 


Misoginia, uma história com quase 2500 anos

   Na sociedade de matriz judaico-cristã, a misoginia que ainda hoje é vivenciada, é resultado de uma continuada tradição com pelo menos 2500 anos.

  1. O machismo

   Segundo Dicionário Priberam da Língua Portuguesa podemos definir machismo, sem outras adjetivações hoje também usadas, como modos ou atitudes de macho.

   O ser humano é um primata, e nessa condição evolutiva desde a sua origem é machista tal qual como os outros primatas, isto com rasíssimas exceções. A atitude de macho ou macheza pode ser explicada como resultado da evolução e em especial da transmissão cultural geracional.

   De uma maneira geral o macho primata é mais forte que a fêmea primata, e numa sociedade humana onde a força era o mais importante, geração após geração, a característica robustez física foi valorizada.

    Há 2500 anos, em toda a cultura mediterrânea, as sociedades humanas teriam maioritariamente todas a mesma matriz machista. Seria machista, mas não seria misógina.

   Nós, seres humanos, adquirimos capacidade de reflexão e pensamento, mas mantivemos até recentemente a questão da força física como primazia.

   É uma questão de força. O mesmo se passaria e passa entre grupos de homens. O grupo mais forte domina o menos forte, isto tanto faz ser macho como fêmea, homem ou mulher. Recordo mais uma vez que somos primatas.

Cito:

Platão (427/428-348/347 A.E.C.), em República:

“Mulheres e homens têm a mesma natureza em relação à tutela do Estado, salvo na medida em que um é mais fraco e o outro é mais forte”.

Aristóteles (384-322 A.E.C.), em Política:

 “A relação de macho para fêmea é por natureza uma relação de superior a inferior e de governante a governado”.

 

2. As origens da misoginia

 

Segundo Dicionário Priberam da Língua Portuguesa podemos definir misoginia, como a aversão ou desprezo pelos indivíduos do sexo feminino.

 

  Tudo terá começado com Judaísmo pós exilio do chamado Cativeiro Babilónico ou Exilio na Babilónia da classe dirigente, uma elite restrita, dos judeus do antigo reino de Judá por Nabucodonosor II, entre 609 e 587 A.E.C. Foram três as deportação da elite dirigente e a consequente destruição de Jerusalém e do seu Templo.

  A elite foi levada para Babilónia, mas o povo, habitante do território que foi Reino, continuou a sua vida, com os seus cultos aos seus deuses e divindades do panteão cananeu. O politeísmo era comum a toda a cultura da bacia do Mediterrâneo.

   O chamado cativeiro de Babilónia terminou com o início do reinado de Ciro II após a conquista persa, e Ciro decreta que os descendentes da elite Judeia regressem a Judá em 538/537 A.E.C., com o apoio persa para reconstruir o Templo.

   Uma nova forma de imperialismo tinha sido inaugurada.

   A elite regressada já tem consigo assimilada outra cultura religiosa, agora impregnada pela persa. Chega a Judá e choca como o politeísmo judeu. O conflito é iniciado e o Deus dos vencedores apoiados por Ciro, Yhaweh, é imposto aos camponeses que habitam os territórios de Judá. Este processo foi lento e só dado como concluído no século II A. E. C.

   É assim que o único local de culto passa a ser o Templo de Jerusalém e todos os outros Deusas e Deuses e seus locais de culto são banidos e destruídos, exemplificado na proibição de imagens.

Levítico 19:4: Não vos virareis para os ídolos nem vos fareis deuses de fundição. Eu sou o Senhor vosso Deus.

   A nova teologia passa a ser escrita por necessidade da elite sacerdotal, em várias etapas e épocas, em função das necessidades políticas de cada momento. Mesmo assim, muita informação tradicional pré cativeiro de Babilónia e outos mitos passaram a constar nos rolos escritos do novo poder sacerdotal, agora crivada, a nova religião.

   A ler obra de Israel Finkelstein, arqueólogo israelita, professor emérito da Universidade de Tel Aviv e diretor da Escola de Arqueologia e Culturas Marítimas da Universidade de Haifa. https://www.bertrand.pt/autor/israel-finkelstein/257153

   Antes de Ciro II, século VI A.E.C., existia uma sociedade machista e politeísta no reino de Judá e outros reinos vizinhos. Após o século II A. E.C, passou a existir oficialmente em Judá uma sociedade misógina, de poder sacerdotal, monoteísta, um único Deus que foi do panteão cananeu cuja divindade suprema era o Deus El. 

   Judá tem Yhaweh como Deus todo-poderoso, agora tomando as qualidades supremas de EL, uma divindade da montanha, misógina, de uma tribo guerreira de origem pré árabe e sem Deusa consorte.

   Foi oficializado o fim do politeísmo judaico remanescente nos livros do Pentateuco que foram escritas herdadas da oralidade, associamos à influência religiosa persa e filosofia cultural grega.

A ler

Ribeiro, Osvaldo Luiz

Yahweh como um deus outsider: duas hipóteses explicativas para a introdução do culto de Yahweh em Israel.

https://periodicos.ufes.br/agora/article/view/14056

 

    As mensagens de combate do poder antigo e de imposição da nova ideologia podem ser encontradas em várias passagens que nos indicam o que o escritor queria narrar e a quem se dirigia.

 

 Salomão, aqui apresentado como politeísta, é condenado pela nova ideologia em 1 Reis 11:5-8

 5 Porque Salomão seguiu a Astarte, deusa dos sidónios, e Milcom, a abominação dos amonitas.

6 Assim fez Salomão o que parecia mal aos olhos do Senhor; e não perseverou em seguir ao Senhor, como David, seu pai.
7 Então edificou Salomão um alto a Quemós, a abominação dos moabitas, sobre o monte que está diante de Jerusalém, e a Moloque, a abominação dos filhos de Amom.
8 E assim fez para com todas as suas mulheres estrangeiras, as quais queimavam incenso e sacrificavam a seus deuses.


   Encontramos em Genesis 4 a história mítica contada pelos vencedores. Abel é o que vai ao templo com o animal a sacrificar, pagar o imposto ao sacerdote que governa Judá, e Caim o fratricida que representa o agricultor politeísta que seguia a religião antiga, o derrotado e seus descendentes, os tubalcaim.

    Para terminar com o culto de Deusas, os sacerdotes no poder, proibiram, baniram ou eliminaram as sacerdotisas. Foi imposta a ideologia da impureza das deusas na impureza da mulher.

 

Levítico 18:19 

E não chegarás à  mulher durante a imundície da sua menstruação.

 A ler

Ribeiro, Osvaldo Luiz

As mulheres do efa: epílogo da interdição da deusa e do feminino na Judá pós-exílica. Revista Pistis & Praxis https://www.redalyc.org/pdf/4497/449748255010.pdf

 

3. A invenção do Diabo.

 

   Segundo o judaísmo pós exilio, o pecado é condenação à morte. Yhaweh matará o pecador caso ele não vá fazer o sacrifício de sangue de animal no único local permitido, o Templo em Jerusalém.

 

No pré exílio o Bom e o Mau eram resultado dos humores divinos.

Vejamos o que temos como prova bíblica:

 

Isaías 45:7 “Eu formo a luz, e crio as trevas; eu faço a paz, e crio o mal; eu sou o Senhor, que faço todas estas coisas.

   O conceito de Diabo, em relação às religiões do Livro só é introduzido após o chamado cativeiro da Babilónia, século VI A. E. C.  

 

   Na nova religião pós exilio houve a necessidade de justificar o Mal, não o Mau, dado que Yhaweh só faria o Bem.

   É de origem na teologia persa a invenção do Diabo, um funcionário, digamos assim, da corte de Yhaweh.

 

   É, também, de origem persa a doutrina da luta escatológica entre e bem e o mal, onde o bem vencerá no fim. Para tal foi sinetado o Diabo.

A ler

Ribeiro, Osvaldo Luiz

https://www.academia.edu/en/24267489/Nem_Diabo_nem_Celeste_considera%C3%A7%C3%B5es_sobre_a_figura_do_Satan_em_Zacarias_3_1_10

 

  4. A Misoginia mais recente

  As religiões monoteístas, cristã e islamita com a mesma raiz, promoveram ao longo dos séculos a misoginia, aquilo a que se poderá chamar um continuado ato desonesto, incorreto e condenável, enfim, uma safadeza de séculos e séculos em relação às nossa mães, mulheres e filhas.

   O cristianismo lidou bem com a imundice do nascimento, apesar das novas ideias que sopravam as mentes de alguns europeus, e que também sopravam algumas velas das igrejas.

 

Ver Lucas 2:22, e, cumprindo-se os dias da purificação dela, segundo a lei de Moisés, o levaram a Jerusalém, para o apresentarem ao Senhor.

 

Ver

https://blog-do-manel.blogspot.com/2008/06/para-o-das-neves.html

"Fugi da companhia das mulheres, pois assim, como a traça roe o vestido, assim também a mulher é causa, e ocasião de pecado ao homem."

Do livro “A Voz de Jesus Christo pela boca dos parochos”

O Papa Pio IX “resolve” o assunto com Dogma da Imaculada Conceição, Bula de 8 de dezembro de 1854.

https://www.institutojacksondefigueiredo.org/documentos-da-igreja/bula-ineffabilis-deus

 Assim, todas as mulheres são imundas, menos uma o foi.

 

 

5. Os cultos festivos

   Antes do judaísmo pós exílio entre os povos camponeses, o conceito de Bem e Mal não existiriam, mas sim o que é bom e o que é mau ou ruim. Muito menos teriam o atual conceito de humanidade ou de universo.

   O mito da criação era relacionado com a criação do seu espaço, a terra local onde viviam. Todos os povos desse tempo tinham uma cosmogonia e uma cosmovisão muito semelhantes. Cada terra tinha as suas divindades, os seus deuses criadores. Os povos eram politeístas e o culto principal seria o da fertilidade.

   Tudo seria muito semelhante em toda a bacia do Mediterrânio. Os cultos eram levados e trocados pelas viagens, negócios, miscigenação, onde cada tribo, grupo ou território teria o seu Panteão de Deuses, e os grupos dominantes teriam os seus deuses mais poderosos que outros. Enfim uma hierarquização de deuses e deusas.

   O culto festivo ao longo do ciclo agrário, o que criava abundância e ao mesmo tempo dependência e penúria devida às contingências climatéricas e humanas, era orgiástico entre os deuses, dependendo das hierarquias de tribo para tribo e de região para região. A deusa mãe, a mães dos deuses e o deus maior, tudo era explicado na prática sexual divina. O Sol e Lua, o Mar a Montanha, o Trovão e o Vento. Todos os deuses teriam parceiras deusas para assim os humanos encontrarem o equilíbrio pontual das suas necessidades, ansias, alegrias e aflições. O bom e o mau andavam lado a lado.

   O bom e o mau eram resultado das interferências das vontades e caprichos dos muitos deuses, independentemente das suas importâncias hierárquicas no panteão. Os deuses ao fazerem bem para um povo ou tribo, muitas vezes estavam a fazer o mau a outos.

   Poderemos reduzir isto tudo a quatro palavras: o encontro circunstancial dos opostos necessários.

 

6. A Religião popular portuguesa e a misoginia

 

   A igreja católica Portuguesa sempre teve problemas com a religião popular portuguesa, que ainda hoje é de teor politeísta.

   Da leitura da obra de Moisés Espirito Santo, professor Catedrático Jubilado da Universidade Nova de Lisboa, sociólogo, etnógrafo e etnólogo, grande estudioso do fenómeno religioso, onde as divindades passaram a santos e santas, onde as deusas mãe, como aquela a que Salomão fez o culto, passaram a nossas senhoras várias, até à última com nome da filha do profeta Mohamed, hoje já afastada da teologia inicial que lhe deu origem.

 

   Mas a imundice teológica da mulher não é importante para a religião popular, onde os substitutos dos deuses, os santos e santinhas com seus ícones e estatuetas se mantêm em lenda ainda no presente.

 

https://www.wook.pt/autor/moises-espirito-santo/4708

 

 

7. Uma vivência pessoal na localidade do Picoto, freguesia de Covões.

 

   No 15 de Janeiro de 2003, dia do Santo Amaro, fiz uma visita ao santuário em dia festivo na companhia de vários amigos, entre os quais o já falecido escritor Idalécio Cação, professor que foi na Universidade de Aveiro, e António Castelo Branco, natural dos Covões, entre outros. Aí ouvi contar a um vendedor e propagandista de feiras, a seguinte história de conflitos entre santos, os herdeiros das ancestrais divindades.

 

   O Santo Amaro do Picoto teve um caso amoroso com a Senhora da Guia do Montouro, aldeia ao lado.

   S. Romão, irmão de Santo Amaro, ciumento, lutou com Santo Amaro, partiu-lhe uma perna. Daí Santo Amaro ser representado por um coxo apoiado à sua bengala.

    Mas Santo Amaro vence, tem mais esmolas que S. Romão. Este ficou num pequeno nicho à entrada da povoação e passou a ser protetor dos cães danados.

A ler

Os lazarilhos da Gândara / António Castelo Branco

http://opac.ua.pt/cgi-bin/koha/opac-detail.pl?biblionumber=267004

 

 

   No politeísmo popular, apesar de um pendor machista primevo, dificilmente existiria a misoginia, mas o mais certo é eu estar possivelmente errado.

 


Sem comentários: