Misoginia, uma história
com quase 2500 anos
Na sociedade de
matriz judaico-cristã, a misoginia que ainda hoje é vivenciada, é resultado de
uma continuada tradição com pelo menos 2500 anos.
1. O machismo
Segundo Dicionário Priberam da Língua Portuguesa podemos definir
machismo, sem outras adjetivações hoje também usadas, como modos ou atitudes de
macho.
O ser humano é
um primata, e nessa condição evolutiva desde a sua origem é machista tal qual
como os outros primatas, isto com rasíssimas exceções. A atitude de macho ou
macheza pode ser explicada como resultado da evolução e em especial da
transmissão cultural geracional.
De uma maneira
geral o macho primata é mais forte que a fêmea primata, e numa sociedade humana
onde a força era o mais importante, geração após geração, a característica
robustez física foi valorizada.
Há 2500 anos,
em toda a cultura mediterrânea, as sociedades humanas teriam maioritariamente
todas a mesma matriz machista. Seria machista, mas não seria misógina.
Nós, seres
humanos, adquirimos capacidade de reflexão e pensamento, mas mantivemos até
recentemente a questão da força física como primazia.
É uma questão de
força. O mesmo se passaria e passa entre grupos de homens. O grupo mais forte
domina o menos forte, isto tanto faz ser macho como fêmea, homem ou mulher.
Recordo mais uma vez que somos primatas.
Cito:
Platão
(427/428-348/347 A.E.C.), em República:
“Mulheres e homens têm a mesma natureza em relação
à tutela do Estado, salvo na medida em que um é mais fraco e o outro é mais
forte”.
Aristóteles (384-322 A.E.C.), em Política:
“A relação
de macho para fêmea é por natureza uma relação de superior a inferior e de
governante a governado”.
2. As origens da misoginia
Segundo Dicionário Priberam da
Língua Portuguesa podemos definir misoginia, como a aversão ou desprezo pelos indivíduos do sexo feminino.
Tudo terá
começado com Judaísmo pós exilio do chamado Cativeiro Babilónico ou Exilio na
Babilónia da classe dirigente, uma elite restrita, dos judeus do antigo reino
de Judá por Nabucodonosor II, entre 609 e 587 A.E.C. Foram três as
deportação da elite dirigente e a consequente destruição de Jerusalém e do seu
Templo.
A elite foi
levada para Babilónia, mas o povo, habitante do território que foi Reino,
continuou a sua vida, com os seus cultos aos seus deuses e divindades do
panteão cananeu. O politeísmo era comum a toda a cultura da bacia do
Mediterrâneo.
O chamado cativeiro de Babilónia terminou
com o início do reinado de Ciro II após a conquista persa, e Ciro decreta que
os descendentes da elite Judeia regressem a Judá em 538/537 A.E.C., com o apoio
persa para reconstruir o Templo.
Uma nova forma de imperialismo tinha sido
inaugurada.
A elite regressada já tem consigo assimilada
outra cultura religiosa, agora impregnada pela persa. Chega a Judá e choca como
o politeísmo judeu. O conflito é iniciado e o Deus dos vencedores apoiados por
Ciro, Yhaweh, é imposto aos
camponeses que habitam os territórios de Judá. Este processo foi lento e só
dado como concluído no século II A. E. C.
É assim que o
único local de culto passa a ser o Templo de Jerusalém e todos os outros Deusas
e Deuses e seus locais de culto são banidos e destruídos, exemplificado na
proibição de imagens.
Levítico 19:4: Não vos virareis para os ídolos nem vos
fareis deuses de fundição. Eu sou o Senhor vosso Deus.
A nova teologia
passa a ser escrita por necessidade da elite sacerdotal, em várias etapas e
épocas, em função das necessidades políticas de cada momento. Mesmo assim,
muita informação tradicional pré cativeiro de Babilónia e outos mitos passaram
a constar nos rolos escritos do novo poder sacerdotal, agora crivada, a nova religião.
A ler obra de Israel Finkelstein,
arqueólogo israelita, professor emérito da Universidade de Tel Aviv e diretor
da Escola de Arqueologia e Culturas Marítimas da Universidade de Haifa. https://www.bertrand.pt/autor/israel-finkelstein/257153
Antes de Ciro
II, século VI A.E.C., existia uma sociedade machista e politeísta no reino de Judá e outros reinos
vizinhos. Após o século II A. E.C, passou a existir oficialmente em Judá uma
sociedade misógina, de poder sacerdotal, monoteísta, um único Deus que foi do
panteão cananeu cuja divindade suprema era o Deus El.
Judá tem Yhaweh como Deus
todo-poderoso, agora tomando as qualidades supremas de EL, uma divindade da
montanha, misógina, de uma tribo guerreira de origem pré árabe e sem Deusa
consorte.
Foi oficializado o fim do
politeísmo judaico remanescente nos livros do Pentateuco que foram escritas
herdadas da oralidade, associamos à influência religiosa persa e filosofia
cultural grega.
A ler
Ribeiro, Osvaldo Luiz
Yahweh como um deus outsider: duas hipóteses explicativas para a introdução
do culto de Yahweh em Israel.
https://periodicos.ufes.br/agora/article/view/14056
Salomão, aqui apresentado como
politeísta, é condenado pela nova ideologia em 1 Reis 11:5-8
5 Porque Salomão seguiu a Astarte, deusa dos sidónios, e Milcom, a abominação dos amonitas.
6 Assim fez Salomão o que parecia mal aos olhos
do Senhor; e não perseverou em seguir ao Senhor, como David, seu pai.
7 Então edificou Salomão um alto a Quemós, a
abominação dos moabitas, sobre o monte que está diante de Jerusalém, e a
Moloque, a abominação dos filhos de Amom.
8 E assim fez para com todas as suas mulheres
estrangeiras, as quais queimavam incenso e sacrificavam a seus deuses.
Encontramos em Genesis 4 a história mítica
contada pelos vencedores. Abel é o que vai ao templo com o animal a sacrificar,
pagar o imposto ao sacerdote que governa Judá, e Caim o fratricida que
representa o agricultor politeísta que seguia a religião antiga, o derrotado e
seus descendentes, os tubalcaim.
Levítico 18:19
E não chegarás
à mulher durante a imundície da sua menstruação.
A ler
Ribeiro, Osvaldo Luiz
As mulheres do
efa: epílogo da interdição da deusa e do feminino na Judá pós-exílica. Revista
Pistis & Praxis https://www.redalyc.org/pdf/4497/449748255010.pdf
3. A invenção do Diabo.
Segundo o judaísmo pós exilio, o
pecado é condenação à morte. Yhaweh matará o pecador caso ele não vá fazer o
sacrifício de sangue de animal no único local permitido, o Templo em Jerusalém.
No pré exílio o Bom e o Mau eram resultado dos humores divinos.
Vejamos o que temos como prova bíblica:
Isaías 45:7 “Eu
formo a luz, e crio as trevas; eu faço a paz, e crio o mal; eu sou o Senhor,
que faço todas estas coisas.”
O conceito de Diabo, em relação às religiões
do Livro só é introduzido após o chamado cativeiro da Babilónia, século VI A.
E. C.
Na nova religião
pós exilio houve a necessidade de justificar o Mal, não o Mau, dado que Yhaweh
só faria o Bem.
É de origem na
teologia persa a invenção do Diabo, um funcionário, digamos assim, da corte de
Yhaweh.
É, também, de
origem persa a doutrina da luta escatológica entre e bem e o mal, onde o bem
vencerá no fim. Para tal foi sinetado o Diabo.
A ler
Ribeiro, Osvaldo Luiz
4. A Misoginia mais recente
As religiões monoteístas, cristã e islamita
com a mesma raiz, promoveram ao longo dos séculos a misoginia, aquilo a que se
poderá chamar um continuado ato desonesto, incorreto e condenável, enfim, uma
safadeza de séculos e séculos em relação às nossa mães, mulheres e filhas.
O cristianismo lidou bem com a
imundice do nascimento, apesar das novas ideias que sopravam as mentes de
alguns europeus, e que também sopravam algumas velas das igrejas.
Ver Lucas
2:22, e, cumprindo-se os dias da
purificação dela, segundo a lei de Moisés, o levaram a Jerusalém, para o
apresentarem ao Senhor.
Ver
https://blog-do-manel.blogspot.com/2008/06/para-o-das-neves.html
"Fugi
da companhia das mulheres, pois assim, como a traça roe o vestido, assim também
a mulher é causa, e ocasião de pecado ao homem."
Do livro “A
Voz de Jesus Christo pela boca dos parochos”
O Papa Pio IX “resolve” o assunto com Dogma da Imaculada Conceição, Bula de 8 de dezembro
de 1854.
https://www.institutojacksondefigueiredo.org/documentos-da-igreja/bula-ineffabilis-deus
Assim, todas as mulheres são imundas, menos
uma o foi.
5. Os cultos festivos
Antes do
judaísmo pós exílio entre os povos camponeses, o conceito de Bem e Mal não
existiriam, mas sim o que é bom e o que é mau ou ruim. Muito menos teriam o
atual conceito de humanidade ou de universo.
O mito da
criação era relacionado com a criação do seu espaço, a terra local onde viviam.
Todos os povos desse tempo tinham uma cosmogonia e uma cosmovisão muito
semelhantes. Cada terra tinha as suas divindades, os seus deuses criadores. Os
povos eram politeístas e o culto principal seria o da fertilidade.
Tudo seria muito
semelhante em toda a bacia do Mediterrânio. Os cultos eram levados e trocados
pelas viagens, negócios, miscigenação, onde cada tribo, grupo ou território
teria o seu Panteão de Deuses, e os grupos dominantes teriam os seus deuses
mais poderosos que outros. Enfim uma hierarquização de deuses e deusas.
O culto festivo
ao longo do ciclo agrário, o que criava abundância e ao mesmo tempo dependência
e penúria devida às contingências climatéricas e humanas, era orgiástico entre
os deuses, dependendo das hierarquias de tribo para tribo e de região para
região. A deusa mãe, a mães dos deuses e o deus maior, tudo era explicado na
prática sexual divina. O Sol e Lua, o Mar a Montanha, o Trovão e o Vento. Todos
os deuses teriam parceiras deusas para assim os humanos encontrarem o
equilíbrio pontual das suas necessidades, ansias, alegrias e aflições. O bom e
o mau andavam lado a lado.
O bom e o mau
eram resultado das interferências das vontades e caprichos dos muitos deuses,
independentemente das suas importâncias hierárquicas no panteão. Os deuses ao
fazerem bem para um povo ou tribo, muitas vezes estavam a fazer o mau a outos.
Poderemos
reduzir isto tudo a quatro palavras: o encontro circunstancial dos opostos
necessários.
6. A Religião popular portuguesa e a misoginia
A igreja católica Portuguesa sempre teve problemas com a religião
popular portuguesa, que ainda hoje é de teor politeísta.
Da leitura da obra de Moisés Espirito Santo, professor Catedrático Jubilado da Universidade Nova
de Lisboa, sociólogo, etnógrafo e etnólogo, grande
estudioso do fenómeno religioso, onde as divindades passaram a santos e santas,
onde as deusas mãe, como aquela a que Salomão fez o culto, passaram a nossas
senhoras várias, até à última com nome da filha do profeta Mohamed, hoje já
afastada da teologia inicial que lhe deu origem.
Mas a imundice teológica da mulher não é importante para a religião
popular, onde os substitutos dos deuses, os santos e santinhas com seus ícones
e estatuetas se mantêm em lenda ainda no presente.
https://www.wook.pt/autor/moises-espirito-santo/4708
7. Uma vivência pessoal na localidade do Picoto,
freguesia de Covões.
No 15 de Janeiro de 2003, dia do Santo Amaro, fiz uma visita ao
santuário em dia festivo na companhia de vários amigos, entre os quais o já
falecido escritor Idalécio Cação, professor que foi na Universidade de Aveiro,
e António Castelo Branco, natural dos Covões, entre outros. Aí ouvi contar a um
vendedor e propagandista de feiras, a seguinte história de conflitos entre
santos, os herdeiros das ancestrais divindades.
O Santo
Amaro do Picoto teve um caso amoroso com a Senhora da Guia do Montouro, aldeia
ao lado.
S. Romão,
irmão de Santo Amaro, ciumento, lutou com Santo Amaro, partiu-lhe uma perna.
Daí Santo Amaro ser representado por um coxo apoiado à sua bengala.
Mas
Santo Amaro vence, tem mais esmolas que S. Romão. Este ficou num pequeno nicho
à entrada da povoação e passou a ser protetor dos cães danados.
A ler
Os lazarilhos da Gândara
/ António Castelo Branco
http://opac.ua.pt/cgi-bin/koha/opac-detail.pl?biblionumber=267004
No politeísmo
popular, apesar de um pendor machista primevo, dificilmente existiria a
misoginia, mas o mais certo é eu estar possivelmente errado.
Sem comentários:
Enviar um comentário