O Fado.
Uma visão de
1873.
Na gravura do
mestre Raphael Bordallo Pinheiro, podemos ver a guitarra portuguesa ainda de
cravelhas de pau.
O Fado é a
cantiga que define um povo. Melancólica e apaixonada, como o temperamento que a
deu à luz, ela tem na sua toada sonolenta alguma coisa de magoado em que
transluz toda uma epopeia roxa de saudade. Da antiga tradição aventureira e sonhadora
que nos tem vindo pelos séculos fora até estacar ma miséria inerte d’hoje em
dia, é ela o grito mais fundo e mais bem lançado que a alma de uma
nacionalidade tem sabido – grito que só se dá a sós com o coração, grito intimo
de tortura e descalabro de ambições. À ventura pelos mundos de Cristo, sacola
ao ombro e bordão de peregrino a quem nada preocupa, peregrino da ilusão- o português
leva sempre nos lábios a doce cantiga do fado, como balsamo para todas as mágoas
e incentivo à sua sensibilidade. Raça de poetas e viageiros, não se dá connosco
a fria realidade; d’olhos vendados se caminha: se amanhã não houver pão, Deus o
dará; ao longe é a bruma e para ela se vai, inconscientemente, não antevendo
perigos, desdenhando obstáculos, abandonando conselhos da consciência, d’aí a
valentia do português, a sua tenacidade, a sua ingenuidade e o seu bom fundo.
Quem mal não pensa mal não cuida. O Fado foi, pois, a cantiga mais
consentaneamente inventada para companheira deste simples deixar correr que
reside em todos nós. Lutas da alma, saudades de tempos idos e coisas
desaparecidas, queixas d’amante desprezado, soluço amargo de uma dor oculta,
tudo isso ela traduz com um sentimento pungente e doloroso. A mesma ironia é
coada por lágrimas; abranda nas inflexões do lamento e em vez de irritar,
sensibiliza; amolece os intuitos; quer ferir e afaga, quer apunhalar e dá vida.
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