terça-feira, abril 07, 2020

Filosofices e outras coisas que dão chatisses


O eminente filósofo francês Bruno Latour projeta sua imaginação sobre um futuro pós-pandemia e propõe um interessante exercício para a elaboração de ações e gestos para a saída da recessão global já contratada pela pandemia, de modo a não reproduzirmos a produção insustentável e o consumismo que nos trouxe até esta situação crítica, mas aproveitarmos a oportunidade para construir um mundo mais solidário, sustentável e inclusivo, um mundo mais preparado para o enfrentamento de outra grande crise que está no horizonte próximo, a crise climática.
Por Bruno Latour
Pode haver algo de indecoroso em projetar a imaginação para o período pós-pandemia enquanto os trabalhadores da área da saúde estão, como se diz, “na linha de frente”, milhões de pessoas perdem seus empregos, e muitas famílias em luto não podem sequer enterrar seus mortos. Entretanto, é agora que devemos lutar para que, uma vez terminada a crise provocada pela pandemia, a retomada da economia não traga de volta o mesmo velho regime climático que temos tentado combater, até aqui em vão. De fato, a crise da pandemia está embutida em algo que é, não uma crise – algo sempre passageiro -, mas uma mutação ecológica duradoura e irreversível. Temos boa probabilidade de “sair” da primeira, mas não temos nenhuma chance de “sair” da segunda. As duas situações não têm a mesma escala, mas é muito esclarecedor relacioná-las. Em todo caso, seria uma pena não aproveitarmos a crise sanitária para descobrir outras formas de adentrar a mutação ecológica sem ser às cegas.
Lições da pandemia
A primeira lição da pandemia do coronavírus é também a mais espantosa. De fato, ficou provado que é possível, em questão de semanas, suspender, em todo o mundo e ao mesmo tempo, um sistema econômico que até agora nos diziam ser impossível desacelerar ou redirecionar. A todos os argumentos apresentados pelos ecologistas sobre a necessidade de alteração do nosso modo de vida, sempre se opunha o argumento da força irreversível do “trem do progresso”, que nada era capaz de tirar dos trilhos, “em virtude”, dizia-se, “da globalização”. Ora, é justamente seu caráter globalizado que torna tão frágil o famoso desenvolvimento, o qual, ao contrário, pode sim ser desacelerado e finalmente parado.
De fato, não são apenas as multinacionais ou os acordos comerciais ou a internet ou as agências de turismo que estão globalizando o planeta: cada entidade deste mesmo planeta tem sua maneira própria de integrar os outros elementos que compõem, em um dado momento, o coletivo. Isso é verdade para o CO2, que aquece a atmosfera global por sua difusão no ar; para as aves migratórias, que transportam novas formas de gripe; mas também é verdade, como estamos dolorosamente reaprendendo, para o coronavírus, cuja capacidade de ligar “todos os humanos” passa pela via aparentemente inofensiva dos nossos perdigotos. Contra a globalização, uma globalização ainda maior: se o objetivo é conectar bilhões de humanos, os micróbios estão aí para isso mesmo!
Daí esta incrível descoberta: havia de fato no sistema econômico mundial, escondido de todos os olhares, um sinal de alarme vermelho vivo, junto a uma grande alavanca de aço que cada chefe de Estado podia puxar de uma só vez para fazer parar “o trem do progresso” com um estridente guincho de freios. Se, em janeiro, o pedido por uma curva de 90 graus que nos permitisse aterrissar ainda parecia uma doce ilusão, agora ele se torna muito mais realista: qualquer motorista sabe que para ter alguma chance de se salvar fazendo uma rápida manobra no volante sem sair da estrada é melhor primeiro desacelerar…
Infelizmente, não são só os ecologistas que veem nessa pausa súbita no sistema de produção globalizado uma grande oportunidade de fazer avançar seu programa de aterrissagem. Os adeptos da globalização, aqueles que, em meados do século XX, inventaram a ideia de escapar das restrições planetárias, também veem nela uma excelente oportunidade de se desvencilhar ainda mais radicalmente do que resta de obstáculos à sua fuga para fora do mundo. Para eles, essa é uma oportunidade boa demais de se livrarem do resto do Estado social, da rede de segurança dos mais pobres, do que ainda resta de regulamentação contra a poluição e, mais cinicamente ainda, de se livrarem de toda essa gente em excesso que atulha o planeta. [1]
Os perigos que rondam o futuro próximo
Não esqueçamos, de fato, que devemos assumir que esses adeptos da globalização estão conscientes da mutação ecológica, e que todos os esforços por eles feitos nos últimos 50 anos consistiram em negar a importância das mudanças climáticas e, ao mesmo tempo, em escapar de suas consequências, construindo fortalezas que possam garantir seus privilégios, bastiões inacessíveis àqueles que terão que ser deixados para trás. Eles não são ingênuos a ponto de acreditar no grande sonho modernista da partilha universal dos “frutos do progresso”; a novidade é sua franqueza: eles agora sequer se preocupam em fazer as massas acreditar nessa ilusão. [2] São eles que aparecem todos os dias na Fox News e que estão no poder de todos os estados negacionistas do planeta, de Moscou a Brasília, de Nova Delhi a Londres e Washington.
O que torna a situação atual tão perigosa não são apenas as mortes que se acumulam diariamente, mas a suspensão geral de um sistema econômico que proporciona, àqueles que querem ir ainda mais longe em sua fuga para fora do mundo planetário, uma excelente oportunidade de “recolocar tudo em questão”. Não devemos esquecer que o que torna os adeptos da globalização tão perigosos é que eles sabem que perderam, sabem que a negação das mudanças climáticas não poderá continuar indefinidamente, que não há mais nenhuma chance de conciliar seu “desenvolvimento” com os vários “envelopes” [3] do planeta com os quais a economia terá que se haver mais cedo ou mais tarde. Isto é o que os torna dispostos a tentar de tudo para se aproveitar mais uma (última?) vez destas condições excepcionais, para poder durar um pouco mais e proteger a si próprios e aos seus filhos. [4] A “suspensão do mundo”, [5] esta frenagem, esta pausa imprevista, dá-lhes a oportunidade de fugir mais depressa e para mais longe do que jamais imaginaram. Os revolucionários do momento são eles.
É aqui que devemos agir. Se a oportunidade serve para eles, serve também para nós. Se tudo pára, tudo pode ser recolocado em questão, infletido, selecionado, triado, interrompido de vez ou, pelo contrário, acelerado. Agora é que é a hora de fazer o balanço de fim de ano. À exigência do bom senso – “Retomemos a produção o mais rápido possível”- temos de responder com um grito: “De jeito nenhum!”. A última coisa a fazer seria voltar a fazer tudo o que fizemos antes.
Por exemplo, outro dia mostraram na televisão um floricultor holandês, com os olhos cheios de lágrimas, porque teve que jogar fora toneladas de tulipas já prontas para serem embarcadas: não podia mais enviar as tulipas de avião para os quatro cantos do mundo porque não tinha clientes. Só podemos lamentar, é claro; é justo que ele seja compensado. Mas então a câmera recuou, mostrando que suas tulipas são cultivadas hidroponicamente e sob luz artificial antes de serem entregues aos aviões de carga no aeroporto de Schiphol, em Amsterdam, sob uma chuva de querosene. O que justifica a dúvida: “Será realmente útil continuar esta forma de produzir e vender este tipo de flor?”.
Exercício para um futuro solidário, sustentável e inclusivo
Uma coisa leva a outra: se cada um de nós começar a fazer esse tipo de pergunta sobre cada aspecto de nosso sistema de produção, podemos nos tornar efetivos interruptores da globalização – tão efetivos, pois somos milhões, quanto o famoso coronavírus em sua maneira única de globalizar o planeta. O que o vírus consegue com a humilde circulação boca a boca de perdigotos – a suspensão da economia mundial – nós começamos a poder imaginar ser para nós também possível, que nossos pequenos e insignificantes gestos, acoplados uns aos outros, conseguirão: suspender o sistema produtivo. Ao nos colocarmos esse tipo de questão, cada um de nós começa a imaginar “gestos barreira”, [6] mas não apenas contra o vírus: contra cada elemento de um modo de produção que não queremos que seja retomado.
Não se trata mais de retomar ou de transformar um sistema de produção, mas de abandonar a produção como o único princípio de relação com o mundo. [7] Não se trata de revolução, mas de dissolução, pixel por pixel. Como mostra Pierre Charbonnier, [8] após cem anos de um socialismo que se limitou a pensar a redistribuição dos benefícios da economia, talvez seja o momento de inventar um socialismo que conteste a própria produção. É que a injustiça não se limita apenas à redistribuição dos frutos do progresso, mas à própria maneira de fazer o planeta produzir frutos. O que não significa viver de amor ou de brisa, mas aprender a selecionar cada segmento deste famoso sistema pretensamente irreversível, a questionar cada uma das conexões supostamente indispensáveis e a experimentar, pouco a pouco, o que é desejável e o que deixou de sê-lo.
Daí a importância fundamental de usar este tempo de confinamento imposto pela pandemia para descrevermos, primeiro cada um por si, depois em grupo, aquilo a que somos apegados, aquilo de que estamos dispostos a nos libertar, as cadeias que estamos prontos a reconstituir e aquelas que, por meio do nosso comportamento, estamos decididos a interromper. [9] Quanto aos adeptos da globalização, esses parecem ter uma ideia muito clara do que querem ver renascer após a retomada: a mesma coisa, só que pior, com a indústria petrolífera e os gigantescos navios de cruzeiro como bônus. Cabe a nós opor a eles nosso contra-inventário. Se, em apenas um ou dois meses, bilhões de humanos fomos capazes, ao apito do árbitro, de aprender o novo “distanciamento social”, de nos afastar uns dos outros para sermos mais solidários, de ficar em casa para não sobrecarregarmos os hospitais, podemos perfeitamente imaginar o poder transformador desses novos gestos, barreiras erguidas contra a repetição de tudo exatamente como era antes, ou pior, contra uma nova investida mortífera daqueles que querem escapar de vez à força de atração da Terra.
Como é sempre preferível acompanhar um argumento com um exercício, proponho este a seguir, derivado dos procedimentos do consórcio Où atterrir, que submeto ao discernimento dos leitores até que seja possível apresentar uma versão digital aceitável.
Aproveitemos a suspensão forçada da maior parte das atividades para fazer um inventário daquelas que gostaríamos que não fossem retomadas e daquelas que, pelo contrário, gostaríamos que fossem ampliadas. Responda às seguintes perguntas, primeiro individualmente e depois coletivamente:
1ª pergunta: Quais as atividades agora suspensas que você gostaria que não fossem retomadas?
2ª pergunta: Descreva por que essa atividade lhe parece prejudicial / supérflua / perigosa / sem sentido e de que forma o seu desaparecimento / suspensão / substituição tornaria outras atividades que você prefere mais fáceis / pertinentes. (Faça um parágrafo separado para cada uma das respostas listadas na pergunta 1).
3ª pergunta: Que medidas você sugere para facilitar a transição para outras atividades daqueles trabalhadores / empregados / agentes / empresários que não poderão mais continuar nas atividades que você está suprimindo?
4ª pergunta: Quais as atividades agora suspensas que você gostaria que fossem ampliadas / retomadas ou mesmo criadas a partir do zero?
5ª pergunta: Descreva por que essa atividade lhe parece positiva e como ela torna outras atividades que você prefere mais fáceis / harmoniosas / pertinentes e ajuda a combater aquelas que você considera desfavoráveis. (Faça um parágrafo separado para cada uma das respostas listadas na pergunta 4).
6ª pergunta: Que medidas você sugere para ajudar os trabalhadores / empregados / agentes / empresários a adquirir as capacidades / meios / receitas / instrumentos para retomar / desenvolver / criar esta atividade

1 comentário:

Menphis disse...

Afinal está tudo por fazer.
Eu seu que me torno repetitivo...
Começaria por reorganizar os sistemas contributivos para a segurança solidária (sim, não disse segurança social, disse segurança solidária).
Abraços