OPINIÃO
O fim-de-semana em que a Europa morreu
A União Europeia são 28 e no fim obedece-se à Alemanha. O Eurogrupo são 19 e no fim e no princípio obedece-se à Alemanha.
Ao contrário do que por vezes dizemos, a União Europeia não é uma organização de estados, nem um conjunto de tratados, nem sequer um conjunto de territórios e de nações, nem sequer uma história comum. A União Europeia é uma ideia. Um sonho de um certo futuro. Um sonho simultaneamente generoso e ambicioso, um sonho feliz como são os sonhos que sonhamos para os nossos filhos. E foi em nome dessa ideia, desse sonho comum de um futuro justo e próspero, que todos estes países, todas estas nações com tradições e línguas diferentes, com um passado carregado de guerras entre si, deram os difíceis passos de construção desta entidade que foi preciso inventar, a que chamamos hoje União Europeia, e que gostámos de imaginar que poderia representar as mais belas tradições da Europa, esconjurar os terríveis demónios do nosso continente e ser um farol para o resto do mundo.
Este sonho de uma Europa que seria a casa natural da democracia, um clube de democracias, uma associação de estados diversos mas solidários e iguais em direitos, regido pela equidade, pela justiça, pela liberdade, pela razão e pela cultura, pela defesa dos direitos humanos e pelo amor da paz, cosmopolita e aberto ao mundo, pátria de acolhimento dos que procuram a justiça e o progresso, fonte de entendimento nas relações internacionais, exemplo de um desenvolvimento harmonioso e respeitador das pessoas e da natureza, morreu este fim-de-semana em Bruxelas. A Europa, tal como a sonhámos, é morta.
O velório vai ser longo e doloroso e espera-se apenas que o enterro, ainda sem data marcada, ocorra antes de o cadáver entrar em decomposição. Mas o cheiro, que até agora tem sido disfarçado com perfumes, vai rapidamente tornar-se insuportável para o nariz de qualquer democrata.
Uma ideia é uma coisa poderosa, capaz de mudar o mundo e de mobilizar milhões. Mas é também frágil. E a ideia da Europa não resistiu a uma noite de “waterboarding mental” como aquela a que foi submetido o primeiro-ministro grego, depois de um fim-de-semana de chantagem, de mentiras espalhadas por poderosas máquinas de propaganda (“A Grécia quer viver à custa dos contribuintes europeus”) e de um permanente destilar de ódio contra Atenas.
O ataque à Grécia está ainda em curso e o seu desenlace ainda não se conhece mas, seja qual for a sua evolução, ele já destruiu a Europa.
Teria sido mais honesto se Angela Merkel e Wolfgang Schäuble tivessem enviado os tanques alemães invadir a praça Syntagma e tornar a pilhar abertamente a Grécia como o fizeram as tropas nazis há setenta anos. Mas o que a Alemanha e os seus cúmplices fizeram tem menos riscos e é mais lucrativo. A guerra de hoje ganha-se com “banks instead of tanks”.
O que a Alemanha fez, sob a direcção de Schäuble, a aquiescência de Merkel, a cumplicidade gananciosa de meia dúzia de países e a assistência de uns quantos servos solícitos como Passos Coelho e a hesitação de uns políticos medrosos, como Hollande e Renzi, foi a ocupação da Grécia e a substituição do que restava de democracia por uma ditadura financeira. Não foi uma ocupação militar, mas foi uma ocupação, que roubou a Grécia da réstia de soberania que lhe sobrava.
A União Europeia passou de “clube das democracias” a uma ditadura financeira - assim, sem aspas - executada pela Alemanha e que não tolera o mínimo desvio aos seus ditames. As democracias podem fazer eleições e escolher governos desde que estes façam exactamente o que Berlim e a banca internacional ditam. E, se não o fizerem, arrepender-se-ão amargamente.
Que a austeridade não funciona para resolver os problemas que diz resolver (dívida, crescimento, emprego, competitividade) todos o sabem. Por que razão então a imposição deste “catálogo de atrocidades”, como ontem a revista alemã Der Spiegel chamava às imposições feitas à Grécia? Para dar o exemplo. Para castigar o país que ousou pensar em soberania. Para humilhar o país que ousou convocar um referendo que desafiava Bruxelas e Berlim. Para dobrar a espinha do partido que ousou exigir as reparações de guerra devidas pela Alemanha. Para garantir que nenhum dos países devedores tem veleidades de independência e estraga as contas da Alemanha, a quem convém que haja países endividados que não só lhe pagam juros todos os trimestres, como importam automóveis e submarinos alemães aumentando as suas dívidas, como ainda afugentam dos seus países os investimentos que acabam por cair no colo de Berlim.
A austeridade não é um remédio amargo que a Grécia não quer tomar. É uma invasão de um país por meios não militares, uma usurpação da democracia, uma substituição de governos democráticos e uma forma de eternizar a submissão política dos países. A austeridade é o novo colonialismo. E a União Europeia tornou-se a sua ponta de lança.
Outra lição que este ataque à Grécia nos oferece é que o desejo de hegemonia da Alemanha não é uma fantasia de paranóicos empenhados em desenterrar fantasmas desaparecidos há muito. A Alemanha não esconde aliás essa veleidade. As propostas de Schäuble (como o sequestro de 50 mil milhões de euros de bens, que a Grécia só poderá reaver se pagar um resgate, como nos raptos) acabaram todas por surgir nos documentos, mesmo quando todos pareciam achá-las excessivas.
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