«Sabes o que me lembra este céu? Mais ou menos: a guerra dos astros. Tal e qual. A guerra dos mundos. Um sol maléfico, que tenta destruir a maquete, e sete planetas menores que tentam defendê-la.» [Finisterra, Carlos de Oliveira]
Hoje cheguei ao local do trabalho como se não percorrido o habitual
trajecto casa-trabalho. Não me lembro de ter percorrido tal caminho. O piloto
automático funcionou.
Arrefeceu um pouco esta primavera. O céu de tom cinzento plúmbeo
diz que vai chover. A sirene da fábrica arrebita os braços e as mente para os
ruídos e sons do trabalho que começam a afinar e a executar a ritmada sinfonia do
laboro.
Recordo ter vindo a ouvir a música de J. S. Bach, ritmos
usados antes dos actuais marcados pela máquina e lembro que revisitei o armário
das memórias, servi-me do olvidar do trajecto como limpeza de memórias de passados
e pessoas inseguras que me trazem as tais, de muitos que tenho ouvido, energias
negativas. Lentamente as empurro borda fora e, à mediada que o seu espaço por
elas ocupado no armário diminui, melhor me sinto.
Não sendo dos meus interesses, não poderão fazer companhia
de estrada. Além de me roubar essa tal energia, colam-me uma sensação de ressentimentos
de ordens várias e estranhas, ou mesmo uns resquícios de culpa. Lentamente tudo
para fora do armário das memórias e não me levem nas memórias. Eu sigo o meu
caminho.
Eu ainda sou do tempo em que havia em Portugal um partido irmão do Partido Comunista da China, era o nosso PCP-ml o partido que os chineses reconheciam como o partido da vanguarda da classe operária portuguesa. Era uma das várias organizações ML que deram ao país uma boa parte dos seus actuais políticos. Curiosamente, o seu líder era um tal Eduíno Vilar que durante anos deixou de ser visto, para ressuscitar num congresso do PSD ocorrido no Coliseu dos Recreios em Lisboa, onde deu nas vistas por causa de um qualquer incidente. Não sei se faz parte da imensa comitiva medieval que serviu de corte aos nossos monarcas da Quinta da Conchas, mas era da mais elementar justiça ter sido convidado.
E quando o Eduíno Vilar era o tuga que representava o puro comunismo maoísta o metalúrgico Jerónimo de Sousa era o modelo de comunista na versão soviética, nesse tempo ao mesmo tempo que a URRS trocava tiros na fronteira com a República Popular da China e o Vietname pró-soviético expulsava os khmers vermelhos pró-chineses do Cambodja por cá o Eduíno seguia a linguagem do MRPP de Durão Barroso e chamava social-fascista ao Jerónimo e este respondia designando os ML por pequena burguesia radical. Era o tempo em que a camarada Zita Seabra, o modelo de mulher comunista, peluda e a cheirar a cavalo, liderava um MJT, uma espécie de milícia do PCP, numa batalha épica com o MRPP que destruiu a biblioteca do ISE.
Por vezes o destino é mesmo irónico e a orgulhosa direita portuguesa vai hoje a Pequim passar a mão no pêlo dos perigosos comunistas nascidos na revolução cultural chinesa e moldados na repressão mortífera dos manifestantes da Praça da Paz Celestial. Mas isso aconteceu muito antes das primavera árabes ou das manifestações de Kiev e agora os comunistas chineses são bem-vindos, eles e o seu dinheiros conseguindo à custa de dumping social e de um dos sistemas mais repressivos do planeta.
A admiração da direita pelos chineses é tanta que até o Eduardo Catroga decidiu prolongar a sua dedicação ao país, depois de ter trabalhado a título gratuito na produção do memorando com a troika decidiu perder dinheiro ao prescindir das suas pensões para ganhar muito menos na EDP. Por este andar ainda terá lugar reservado no próximo congresso do PC chinês, como representante da zona económica da Praça Marquês de Pomba, onde se situa a sede maior empresa chinesa da Europa.
Um dia destes ainda vamos ver Eduíno Vilar, Jerónimo de Sousa, Durão Barroso concluírem que aquilo que os une aos chineses é muito mais do que os que os divide em Portugal e superarem as suas divergências políticas. Enfim, não é nada que já não aconteça em muitas autarquias, para não referir o silêncio do PCP em torno do negócio da EDP ou de qualquer interesse chinês no capitalismo português. O amor aos chineses, o ódio ao PS, o desprezo pelo Dalai Lama, os projectos comuns nas autarquias, os jeitos parlamentares no derrube de governos não maoístas são mais razões mais do que suficientes para que um dia destes as correntes portuguesas se fundam num mesmo projecto político.
Da forma mais inesperada Portugal é governado por maoístas e o sucesso do maoísmo por estas bandas é tão grande que até conseguimos colocar um maoísta à frente da Comissão Europeia. Temos a direita com mais maoistas, temos os maoístas melhor colocados na política internacional à escala mundial, temos o maior partido comunista pró-chinês da Europa e talvez mesmo do mundo ocidental. Só falta mesmo sugerir a união de todos os pró-chineses no mesmo partido e a geminação de Portugal com a República Popular da China.
É incorrecta a narrativa que os alemães contaram a si próprios de que a crise do euro teve a ver com o Sul a querer levar o dinheiro deles, diz ex-conselheiro de Durão Barroso.
Philippe Legrain, foi conselheiro económico independente de Durão Barroso, presidente da Comissão Europeia, entre Fevereiro de 2011 e Fevereiro deste ano, o que lhe permitiu acompanhar por dentro o essencial da gestão da crise do euro. A sua opinião, muito crítica, do que foi feito pelos líderes do euro, está expressa no livro que acabou de publicar “European Spring: Why our Economies and Politics are in a mess”.
A tese do seu livro é que a gestão da crise da dívida, ou crise do euro, foi totalmente inepta, errada e irresponsável, e que todas as consequências económicas e sociais poderiam ter sido evitadas. Porque é que as coisas se passaram assim? O que é que aconteceu? Uma grande parte da explicação é que o sector bancário dominou os governos de todos os países e as instituições da zona euro. Foi por isso que, quando a crise financeira rebentou, foram todos a correr salvar os bancos, com consequências muito severas para as finanças públicas e sem resolver os problemas do sector bancário. O problema tornou-se europeu quando surgiram os problemas da dívida pública da Grécia. O que teria sido sensato fazer na altura – e que era dito em privado por muita gente no FMI e que este acabou por dizer publicamente no ano passado – era uma reestruturação da dívida grega. Como o Tratado da União Europeia (UE) tem uma regra de “no bailout” [proibição de assunção da dívida dos países do euro pelos parceiros] – que é a base sobre a qual o euro foi criado e que deveria ter sido respeitada – o problema da Grécia deveria ter sido resolvido pelo FMI, que teria colocado o país em incumprimento, (default), reestruturado a dívida e emprestado dinheiro para poder entrar nos carris. É o que se faz com qualquer país em qualquer sítio. Mas não foi o que foi feito, em parte em resultado de arrogância – e um discurso do tipo ‘somos a Europa, somos diferentes, não queremos o FMI a interferir nos nossos assuntos’ – mas sobretudo por causa do poder político dos bancos franceses e alemães. É preciso lembrar que na altura havia três franceses na liderança do Banco Central Europeu (BCE) – Jean-Claude Trichet – do FMI – Dominique Strauss-Kahn – e de França – Nicolas Sarkozy. Estes três franceses quiseram limitar as perdas dos bancos franceses. E Angela Merkel, que estava inicialmente muito relutante em quebrar a regra do “no bailout”, acabou por se deixar convencer por causa do lobby dos bancos alemães e da persuasão dos três franceses. Foi isto que provocou a crise do euro.
Como assim? Porque a decisão de emprestar dinheiro a uma Grécia insolvente transformou de repente os maus empréstimos privados dos bancos em obrigações entre Governos. Ou seja, o que começou por ser uma crise bancária que deveria ter unido a Europa nos esforços para limitar os bancos, acabou por se transformar numa crise da dívida que dividiu a Europa entre países credores e países devedores. E em que as instituições europeias funcionaram como instrumentos para os credores imporem a sua vontade aos devedores. Podemos vê-lo claramente em Portugal: a troika (de credores da zona euro e FMI) que desempenhou um papel quase colonial, imperial, e sem qualquer controlo democrático, não agiu no interesse europeu mas, de facto, no interesse dos credores de Portugal. E pior que tudo, impondo as políticas erradas. Já é mau demais ter-se um patrão imperial porque não tem base democrática, mas é pior ainda quando este patrão lhe impõe o caminho errado. Isso tornou-se claro quando em vez de enfrentarem os problemas do sector bancário, a Europa entrou numa corrida à austeridade colectiva que provocou recessões desnecessariamente longas e tão severas que agravaram a situação das finanças públicas. Foi claramente o que aconteceu em Portugal. As pessoas elogiam muito o sucesso do programa português, mas basta olhar para as previsões iniciais para a dívida pública e ver a situação da dívida agora para se perceber que não é, de modo algum, um programa bem sucedido. Portugal está mais endividado que antes por causa do programa, e a dívida privada não caiu. Portugal está mesmo em pior estado do que estava no início do programa. Quando diz que os Governos e instituições estavam dominados pelos bancos quer dizer o quê? Quero dizer que os Governos puseram os interesses dos bancos à frente dos interesses dos cidadãos. Por várias razões. Em alguns casos, porque os Governos identificam os bancos como campeões nacionais bons para os países. Em outros casos tem a ver com ligações financeiras. Muitos políticos seniores ou trabalharam para bancos antes, ou esperam trabalhar para bancos depois. Há uma relação quase corrupta entre bancos e políticos. No meu livro defendo que quando uma pessoa tem a tutela de uma instituição, não pode ser autorizada a trabalhar para ela depois. Também diz no seu livro que quando foi conselheiro de Durão Barroso, o avisou claramente logo no início sobre o que deveria ser feito, ou seja, limpar os balanços dos bancos e reestruturar a dívida grega. O que é que aconteceu? Ele não percebeu o que estava em causa, ou percebeu mas não quis enfrentar a Alemanha e a França? Sublinho que isto não tem nada de pessoal. O presidente Barroso teve a abertura de espírito suficiente para perceber que os altos funcionários da Comissão estavam a propôr receitas erradas. Não conseguiram prever a crise e revelaram-se incapazes de a resolver. Ele viu-me na televisão, leu o meu livro anterior (*) e pediu-me para trabalhar para ele como conselheiro para lhe dar uma perspectiva alternativa. O que foi corajoso, e a mim deu-me uma oportunidade de tentar fazer a diferença. Infelizmente, apesar de termos tido muitas e boas conversas em privado, os meus conselhos não foram seguidos. Porquê? Será que a Comissão não percebeu? A Comissão tem a reputação de não ter nem o conhecimento nem a experiência para lidar com uma crise destas. Foi esse o problema? Foram várias coisas. Claramente a Comissão e os seus altos funcionários não tinham a menor experiência para lidar com uma crise. Era uma anedota! O FMI é sempre encarado como a instituição mais detestada [da troika], mas quando foi juntamente com a Comissão à Irlanda, as pessoas do FMI foram mais apreciadas porque sabiam do que estavam a falar, enquanto as da Comissão não tinham a menor ideia. Por isso, uma das razões foi inexperiência completa e, pior, inexperiência agravada com arrogância. Em vez de dizerem “não sei como é que isto funciona, vou perguntar ao FMI ou ver o que aconteceu com as anteriores crises na Ásia ou na América Latina”, os funcionários europeus agiram como se pensassem “mesmo que não saiba nada, vou na mesma fingir que sei melhor”. Ou seja, foram incapazes e arrogantes. A segunda razão é institucional: não havia mecanismos para lidar com a crise e, por isso, a gestão processou-se necessariamente sobretudo através dos Governos. E o maior credor, a Alemanha, assumiu um ponto de vista particular. Claro que isto não absolve a Comissão, porque antes de mais, muitos responsáveis da Comissão, como Olli Rehn [responsável pelos assuntos económicos e financeiros], partilham a visão alemã. Depois, porque o papel da Comissão é representar o interesse europeu, e o interesse europeu deveria ter sido tentar gerar um consenso de tipo diferente, ou pelo menos suscitar algum tipo de debate. Ou seja, a Comissão poderia ter desempenhado um papel muito mais construtivo enquanto alternativa à linha única alemã. E, por fim, é que, embora seja politicamente fraca, a Comissão tem um grande poder institucional. Todas as burocracias gostam de ganhar poder. E neste caso, a Comissão recebeu poderes centralizados reforçados não apenas para esta crise, mas potencialmente para sempre, que lhe dão a possibilidade de obrigar os países a fazer coisas que não conseguiram impor antes. É por isso que parte da resposta é também uma tomada de poder.
A limpeza da saída. Este país não é para velhos. Este país não é para novos. É para quem não tem sentido crítico, para quem tem estômago de avestruz e memória de peixe. Este país dificilmente será para mim. Reservo-me novamente o direito de me sentir indignada e desejo que um dia a história me dê algum suporte. Mas creio que este país não seja para quem deseje. Mas vai ser de quem luta. Com Marta Ribeiro