quinta-feira, março 06, 2014

Para ler e ouvir





O GUARDADOR
DE REBANHOS  


Sou um guardador de rebanhos

O rebanho é os meus pensamentos

E os meus pensamentos são todos sensações.

Penso com os olhos e com os ouvidos

E com as mãos e os pés

E com o nariz e a boca.


Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la

E comer um fruto é saber-lhe o sentido.


Por isso quando num dia de calor

Me sinto triste de gozá-lo tanto.

E me deito ao comprido na erva,

E fecho os olhos quentes,

Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,

Sei a verdade e sou feliz.


 


DA MINHA ALDEIA vejo quando da terra
se pode ver no Universo....

Por isso a minha aldeia é grande como outra qualquer

Porque eu sou do tamanho do que vejo

E não do tamanho da minha altura...


Nas cidades a vida é mais pequena

Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.

Na cidade as grandes casas fecham a vista a chave,

Escondem o horizonte, empurram nosso olhar para longe de todo o céu,

Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,

E tornam-nos pobres porque a única riqueza é ver.


Pensar em Deus é desobedecer a Deus,

Porque Deus quis que o não conhecêssemos,

Por isso se nos não mostrou...


Sejamos simples e calmos,

Como os regatos e as árvores,

E Deus amar-nos-á fazendo de nós

Belos como as árvores e os regatos,

E dar-nos-á verdor na sua primavera,

E um rio aonde ir ter quando acabemos!...


  


Se
depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,


Não há nada mais simples

Tem só duas datas — a da minha nascença
e a da minha morte.


Entre uma e outra cousa todos os dias
são meus.




Sou fácil de definir.

Vi como um danado.

Amei as cousas sem sentimentalidade
nenhuma.


Nunca tive um desejo que não pudesse
realizar, porque nunca ceguei.


Mesmo ouvir nunca foi para mim senão
um acompanhamento de ver.


Compreendi que as cousas são reais e
todas diferentes umas das outras;


Compreendi isto com os olhos, nunca
com o pensamento.


Compreender isto com o pensamento
seria achá-las todas iguais.




Um dia deu-me o sono como a qualquer
criança.


Fechei os olhos e dormi.

Além disso, fui o único poeta da
Natureza
.







As bolas de sabão que esta criança

Se entretém a largar de uma palhinha

São translucidamente uma filosofia toda.

Claras, inúteis e passageiras como a Natureza,

Amigas dos olhos como as cousas,

São aquilo que são

Com uma precisão redondinha e aérea,

E ninguém, nem mesmo a criança que as deixa,

Pretende que elas são mais do que parecem ser.


 


Algumas mal se vêem no ar lúcido.

São como a brisa que passa e mal toca nas flores

E que só sabemos que passa

Porque qualquer cousa se aligeira em nós

E aceita tudo mais nitidamente.


 


 


O Tejo é mais belo que o rio que
corre pela minha aldeia,

Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia

Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.


O Tejo tem grandes navios

E navega nele ainda,

Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,

A memória das naus.

O Tejo desce de Espanha

E o Tejo entra no mar em Portugal.

Toda a gente sabe isso.

Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia

E para onde ele vai

E donde ele vem.

E por isso porque pertence a menos gente,

É mais livre e maior o rio da minha aldeia.


Pelo Tejo vai-se para o Mundo.

Para além do Tejo há a América

E a fortuna daqueles que a encontram.

Ninguém nunca pensou no que há para além

Do rio da minha aldeia.

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