domingo, março 16, 2014

O consumidor é agora a escumalha

O Fim da Sociedade de Consumo

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Dei-me conta outro dia que a sociedade de consumo acabou. Não sei quando foi.¹ Mas acabou com toda a certeza. E não foi a esquerda que deu cabo dela mas o neoliberalismo. Sim. É verdade.
Dentro da doutrina neoliberal não há pior do que um consumidor. Só os idiotas, os inúteis e os parasitas consomem. É o que significa o discurso do “vivemos acima dos nossos meios”. E aqueles artigos que se surpreendem quando os portugueses gastam o seu dinheiro numa Bimby ou vão muito a concertos. Comem fora, mesmo com sacrifícios.
O país reestruturado pela austeridade neoliberal não consome; produz coisas  para exportar, o que significa consumidas longe, noutro lugar, mais estúpido e esbanjador do que nós – é essa a receita que a Alemanha não se cansa de apregoar. À deslocalização do trabalho juntou-se a deslocalização do consumo. É por isso que, num país pobre, se fazem tantas merdas gurmê e de luxo. Obviamente, não são feitas para serem consumidas aqui.
Baixam-se os salários não apenas para baixar custos mas para diminuir o consumo. E os primeiros impostos que o neoliberal pensa em aumentar, os últimos que se recusa a cortar, são os que incidem sobre o consumo, como o IVA.² Em certos estados americanos ultraliberais, cortaram-se todos os impostos menos estes – não funcionou, mas isso é outra história.
Todo o esquema de pensamento neoliberal se insurge contra o consumo. E, como todos os países querem ser austeritários e neoliberais, depreende-se que, numa utopia neoliberal, o consumo seria erradicado do planeta.
Se o capitalismo clássico assentava na livre troca de mercadorias, o que implica oferta e procura, um ecossistema de produtores e consumidores, o neoliberalismo assenta na empresa. Tudo, desde o Estado até ao simples trabalhador, se torna numa empresa. Só se admite a troca se for feita  entre empresas, com o fim de produzir qualquer coisa. É como o jogo das cadeiras, onde perde o último que fica de pé: o consumidor. Assim, num planeta neoliberal a procura é inteiramente assegurada por empresas que vendem a empresas que vendem a empresas – também não funciona. E também é outra história.
E o empreendedorismo mais ridículo (veja-se Miguel Gonçalves) é melhor que o consumo mais sensato – o simples consumo de bens de primeira necessidade, se não for feito dentro de um enquadramento empresarial, é considerado imoral. Aliás, é o que define a pobreza má por oposição à virtuosa. O bom pobre é aquele que, não tendo dinheiro e consumindo o menos possível, se entrega como objecto, como matéria-prima, à boa vontade empreendedora da caridade privada. O mau pobre gasta o dinheiro que recebe do Estado em bifes, Bimbys e concertos. O Rendimento Social de Inserção e o Subsídio de Desemprego são maus porque não têm como pré-condição serem investidos em empreendedorismo mas podem simplesmente ser gastos (e isso não pode ser). É preferível, dentro da moralidade neoliberal, que um pobre se endivide para formar uma empresa do que gaste o dinheiro que descontou para simplesmente comer ou ver um filme quando deixou de ter um emprego ou se reformou.
Naturalmente, há pontos de vista diferentes: dentro do Keynesianismo, o consumo, a procura, é tão importante como a oferta. Se toda a gente e todos os países produzem mas não compram nada, acabam por não conseguir vender nada, e toda a gente fica mais pobre.
Mas a pior consequência do fim da sociedade de consumo é política. Já se sabe que a austeridade neoliberal reduz a participação democrática do cidadão comum a uma formalidade que, de quatro em quatro anos, pode mudar tudo menos a austeridade neoliberal. Mas não é disso que falo. Falo daquele velho argumento do consumo enquanto  democracia. Vocês sabem: o consumidor, ao decidir comprar o melhor produto, pode influenciar empresas, beneficiando os melhores produtos, apoiando as melhores soluções. As más empresas estão condenadas a morrer, abandonadas pelo consumidor. Privatizando serviços públicos está-se a torná-los mais democráticos, etc. Agora, se ainda acreditam nisto, telefonem para o número de atendimento do vosso fornecedor de internet e tentem cancelar o vosso serviço. Usem a palavra “urgência”.  Boa sorte. Sintam o vosso poder enquanto consumidores. O que quero dizer é que, se não há consumo, também não há democracia enquanto consumo. Ou seja, o neoliberalismo não eliminou apenas a democracia clássica mas aquilo que passava por democracia dentro do capitalismo clássico.
Enquanto o liberalismo clássico se organizava em torno da troca, o neoliberalismo organiza-se em torno da concorrência. Tudo concorre com todo. O consumidor puro, não empresarial, não tem hipótese porque não é competitivo. No liberalismo clássico, ainda havia o laissez faire; agora é a avaliação permanente, a competição eterna, em que cada acto do trabalhador só é legitimado se também for uma avaliação parametrizada. Numa universidade já não se preenche um sumário para informar os alunos do conteúdo de uma aula mas porque conta para as avaliações de desempenho. Se o consumidor não tem quase poder nenhum, a avaliação torna-se técnica, administrativa e burocrática ao extremo.
Percebendo que a sociedade de consumo morreu, percebem-se outras coisas, aparentemente sem relação. O fim da crítica por exemplo. A crítica clássica funcionava como um guia de consumo. Os críticos originais eram consumidores idealizados. Mas, o consumidor é agora a escumalha da terra, quando muito uma unidade de medida para medir os visitantes, e o crítico perdeu quase todo o seu poder.
E percebe-se que uma das possibilidades de fazer frente a este sistema, que é como quem diz “ofendê-lo”, é consumindo. Mesmo com pouco dinheiro, com um cêntimo que seja, gastando-o de um modo desprendido, ostensivo, agressivo – a comer, a viver, mas também a ir a um concerto ou a um filme. No que se entender. Poupando-o. Gastando-o. O que interessar a cada um. Se possível sem culpa. Sem ter de inventar uma desculpa empreendedora para isso. E, de preferência, chateando um neoliberal no processo. Estimulando a procura interna, se interessar um argumento económico. Mas é melhor ir a um concerto (garanto) se isso chatear o José Manuel Fernandes. Chateá-lo de um modo inteiramente não competitivo, claro.
Objectivo para 2014: recuperar modos de agressividade, de luta e de crítica, que não sejam concorrenciais ou produtivos. Crítica não-construtiva. E a melhor forma de o fazer é recuperando a crítica como guia de consumo. Um consumo que, se for feito para chatear, será político – o que não é novidade nenhuma: se para o neoliberalismo o consumo é algo a erradicar, para a esquerda ainda é algo político, ainda se acredita que se pode tomar posição boicotando o Pingo Doce, por exemplo.
1. Foucault já se tinha apercebido disso em 1979.
2. Um dos planos iniciais de Passos Coelho para resolver a crise, ainda antes de ser eleito, era aumentar o IVA.
http://ressabiator.wordpress.com/2013/12/30/o-fim-da-sociedade-de-consumo/
 

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