terça-feira, agosto 06, 2013

A obra literária de Silvério vista por Pedro Calheiros




Pedro Calheiros

21 de Julho de 2013

Gandarilhos de Napoleão
Não vou apresentar-vos o autor de Gandarilhos de Napoleão, aqui no seu concelho, onde é sobejamente conhecido. Além disso, muitos nesta sala conhecem-no bem melhor do que eu. Vou falar sobretudo dos seus livros.
No entanto, inovando no protocolo tradicional destes baptismos literários, e mesmo sem ter grandes dotes vocais, vou apresentá-lo sumariamente cantando:
Os meninos das dunas de Mira
São como as ovelhas
Têm Carapelhos atrás das orelhas.
Pois é, o moreno Silvério,actualmente residente na vila morena da célebre canção, na terra da fraternidade, tem Carapelhos no corpo e na alma. Os seus livros e a Confraria que na sua terra natal criou são disso prova indesmentível.

1 -  Contos da Confraria.
A sua actividade literária começou em 2003 com os Contos da Confraria. Ao oferecer-me este livro, humildemente, pediu-me na dedicatória que fosse benévolo na apreciação deste modesto trabalho – o primeiro, lembrava.
Não vou aceitar o seu pedido e vou julgá-lo severamente.
Com sinceridade, devo confessar que fiquei nabo de surpresa com a confraria e seu trabalho e com a literatura do seu fundador.
Há neste seu livro, e nos seguintes, uma profunda humanidade, uma singeleza e uma humildade que são marcas de água de um humanismo visceral e universal que compensariam a eventual falha de requintes formais, formalistas, mas nem essa muleta é precisa para fazer avançar no palco literário a sua primeira obra.
Repare-se no texto do 4º. Encontro Ementa Bacalhau à enterro. Com ar descontraído, de quem se prepara para um ágape, não esquece o drama imenso de quem trabalha nas marinhas ou na pesca do bacalhau, evocando a alma destes homens que quase não foram meninos (59), numa provável reminiscência de Soeiro Pereira Gomes que escreveu Esteiros Para os filhos dos homens que nunca foram meninos.
Note-se também que não se trata apenas de uma passagem isolada do livro. Há muitas outras notas do mesmo teor. Logo no texto seguinte, 5 º. Encontro Ementa Lapas (a abrir) Pargo no Forno, a propósito das recordações do ti Manel Marques, Silvério Manata apresenta-o como um homem bom que, depois de nas marinhas provar o amargor do sal, de penar na apanha do moliço e de se desterrar nos lodaçais do arroz, experimentou o exílio insular por trinta meses (66).
Nesse mesmo texto se refere o espírito ecléctico da confraria, implícito no nome, que permite ao seu autor ser diverso, grave e ligeiro, não esquecendo os duros sacrifícios daqueles que possibilitam os prazeres de muitos outros, não temendo estragar a festa com tais rememorações.
No 13º. Encontro Ementa Porco no Espeto, neste texto com numeração aziaga, Silvério Manata recria a figura ímpar da Virgínia das Dores, embaixadora da palavra divina, que com trejeitos clericais, apregoava um evangelho torto e atabalhoado (127), para se vingar de Valentina que lhe roubara o Felizardo. Convém notar a carga simbólica dos nomes das personagens.
A onomástica simbólica está igualmente presente noutros textos do livro. Do Chico Alegria (23) ou do Fininho (29) do primeiro texto, ao Vital, biólogo (95), ou ao Cândido ou ao Inocêncio (94) do 9 º. Encontro, ou ainda no 12º. Encontro o crisma do Galo Velho, o Penante (111) ou da sua preferida Pelúcia (113) ou ainda do seu dono o Courelas (111), não faltam exemplos que se possam colher nos Contos da Confraria. Que mais não seja até por antífrase, como é o caso do Fortunato do último encontro.
No penúltimo parágrafo do livro Silvério Manata acaba por pedir ao leitor que deixe o narrador ser simbólico (138).
A dimensão lúdica está omnipresente e, em particular, nos pequenos episódios picarescos, como o do empanturramento com a vaca do Grosso, morta de febres, enterrada e desenterrada para lhe aproveitar a alcatra (102) ou o das bicadas de respeito no rabo dos donos do Penante, aliviando-os do andaço de lombrigas (117), ou o do logro do rapazelho, sôfrego de ver o buço despontar ao ponto de ir dormir com as galinhas debaixo do poleiro, pois tinham-lhe garantido que caca de galinha era óptimo adubo para ver crescer os pêlos da cara (119), ou ainda, entre outros incidentes, o da sementeira de leitões no quintal da ti Valentina (122).
Estes pequenos apontamentos são o fermento embrionário de onde há-de provir um caudal mais farto da veia picaresca nos livros seguintes, dando maior dimensão lúdica, burlesca, às obras.
O andarilhar, que será tema privilegiado dos Gandarilhos de Napoleão já fazem uma discreta aparição nestes primeiros textos de Silvério Manata. No 7º. Encontro, ou desencontro, pois é o capítulo que tem o mesmo número que os pecados capitais, a personagem principal, muito significativamente inominada, é obrigada a partir a salto para França, já que tinha herdado do avô os genes de andarilho (79). No último texto, o protagonista, Fortunato é descrito como um homem de partir e chegar (131),  que longe da terra que o viu nascer, fora nómada e errara pelo mundo, naquela vocação de ser Português (135). Fortunato sôfrego de partir e vaguear nunca assentou, pois por força de girar à volta do mundo, sempre arranjou maneira de continuar a chegar e a partir (138).
O próprio autor é também ele um andarilho gandarês em terras alentejanas.
Algumas imagens ou acontecimentos são narrados sob os auspícios de bons nomes da literatura portuguesa, como é o caso de Júlio Dinis, através do médico gandarês Rosete que superava na região, o paradigma do João Semana (24), ou de Tomás Ribeiro, cujo artifício literário, sobre o “jardim à beira mar plantado”, Silvério Manata considera sempre actual (77), de Raul Brandão, aceitando o autor dos Contos da Confraria as palavras avisadas do autor de Húmus retomando a pergunta de Ferdinand Denis sobre a identidade de um país onde até os bois vão lavrar no oceano (78), de Gedeão  ao convocar a imagem do sonho que comanda a vida a propósito dos anseios dos ceifeiros gandareses na safra do arroz (86),  ou do mestre Torga, que elevara aos píncaros da fama o Tenório, galo aristocrático, enquanto ele Silvério Manata trazia à baila o seu Penante, galo plebeu, filho de um deus menor (111).
Ah, se os políticos que nos desgovernam, governando-se à grande a si próprios, tivessem outra humanidade outro galo cantaria…
Antes de passar ao livro seguinte, não quero deixar de assinalar o provável record de 4 notas introdutórias destes Contos da Confraria. E não deixarei também na obscuridade a belíssima capa e ilustrações de Alves André, epítome do livro, da Gândara e da Confraria dos Nabos e Companhia.
Na primeira Nota Introdutória, Mário Ribeiro Maduro gaba apropriadamente o precioso contributo cultural da confraria que ajuda a levar Mira pelo Mundo e assevera que o livro mostra a Gândara no mais gandarez que ela tem, fazendo um apelo à contemplação do seu colorido especial e à simpatia das suas gentes (9).
Na segunda Nota, Paulo Sá Machado escreve muito justamente que o que é narrado em Contos da Confraria são histórias que ultrapassam a gastronomia, quase a bordejar a própria vivência do autor, grande parte delas verídicas o que torna a obra muito pessoal e narrativa, que facilmente cativa o leitor, não só gastrónomo, mas também o recebedor de histórias (11).
Na terceira nota, a mais extensa, João Reigota escreve que leu com agrado os textos de Silvério Manata, o GRÃO-MESTRE da Confraria, que “passeia” com “graça”, rara sensibilidade e saber pela vida da região, pelo seu património e identidade (12). Depois de um largo apanhado da temática de Contos da Confraria João Reigota conclui o seu texto declarando que Silvério Manata, o GRÃO-MESTRE da Confraria soube valorizar a causa. Com escrita de interessantes textos (reunidos em obra) vem, certamente, prossegue João Reigota, dignificar a terra e a região enriquecendo e divulgando o Património Gandarês.
Um esforço de louvar !, acrescenta no seu remate.
Na última Nota, Manuel Coquim explica a génese dos contos:
Para animar os capítulos da confraria – leia-se os seus jantares – o grão-mestre teve a feliz ideia de apresentar um em cada encontro (22).

2  -  No Reino dos Nabos

O livro seguinte tem capa e ilustrações de Zé Penicheiro, onze desenhos, um para cada conto, estilizados, de traço contrastante e reduzido ao essencial. Abre também com uma epígrafe do artista que diz :
Num coração de esperança /Mora o fruto da Gândara
Numa Nota Introdutória, lembrando a sua afirmação anterior, nos Contos da Confraria, sobre o valor e a dimensão patrimonial dos textos do autor, João Reigota louv[a] renovadamente o mesmo esforço patente  No Reino dos Nabos, consolidando um significativo contributo dado à História da Região (11).
Salientando a seriedade e a força telúrica da obra, o prefaciador declara que essa é a grande mensagem de Silvério Manata, acrescentando ainda esta apreciação: Muito mais do que a inestimável divulgação do património gandarez (13).
O autarca mirense escreve mesmo que ao lermos esta obra sentimos a força telúrica para abraçar grandes causas (12).
O prefaciador proclama que os textos No Reino dos Nabos não são escritos de ocasião ou circunstância, mas sim uma realidade afectiva e científica que marcará, seguramente, as gerações vindouras (14). Estes contos constituem um cristalino legado de Vivência e História locais. Nestes textos estão todos os gandareses. Os de ontem e os de hoje, acrescenta João Reigota, explicando assim o seu pensamento: Ali estão as suas palavras, as suas vivências e peculiaridade na luta diária e na construção dum território (14).
Um pouco antes já escrevera:
Do sentir do autor, brotam para o papel profundas vivências, criatividades, imaginações, emoções, saídas de retalhos e episódios que, muitos já terão “passado à história”, mas que, pela sua autenticidade, marcaram a Alma Gandaresa. Cada palavra, cada frase, constituem um riquíssimo manancial linguístico da região (13).
João Reigota afirma ainda que nos escritos de Silvério Manata brotam para a vida páginas duma velha epopeia (15) e que na obra não viu apenas o jeito, a sensibilidade e a boa disposição do Grão Mestre da Confraria, mas também confessa que sentiu a força das palavras escritas,
o seu magnetismo especial, que recorda, liberta, acalenta, invoca e se projecta nas gerações vindouras (16).


No primeiro conto, “Sarrabulhada”, Silvério Manata aborda a oposição entre a vida rural e a vida citadina, tema que desenvolverá na obra seguinte Arneiro do Mar. Romance ao entardecer.

O registo picaresco reaparece no segundo conto “Leitão à Bairrada”, onde o camarada Leitão (48) antecipa o Albuquerque de Arneiro do Mar. Romance ao entardecer. O sindicalista Leitão recorrendo ao caciquismo e à promiscuidade dos políticos com o futebol e com a igreja, chega a Presidente da edilidade. Sonha com a consagração do autarca Leitão que seria festejada com muito leitão à Bairrada (53). As trafulhices levam a que por falta de fundos as lápides do cemitério sejam usadas para bancas do mercado, provocando um abalo geral quando a marosca é descoberta, até pelo Ministro que procedia à sua inauguração. Silvério Manata conjuga a surpresa com o suspense, dando no final do conto um remate caricato, picaresco, que se enquadra perfeitamente na arte do conto.

Há também notas picarescas em “Favas com Quinhões” na lenda de S. Tomé (69 e 72).

Em “Passarinhos com Grelos”, além do vento, andarilho por definição, o louro sedutor, nas suas andanças vadias, volta a partir para outras paragens, empurrado pela mão cúmplice do vento, mas também porque tinha esgotado o encanto da novidade, seduzido pelo amanhã, pela incógnita do devir, deixando na aldeia e nas cercanias a semente que as inundaria de recém-nascidos, que herdaram a sua vocação nómada (100).
No oitavo conto “Nabos com Farinha” Silvério Manata trata de um problema que retomará depois no seu primeiro romance Arneiro do Mar. Romance ao entardece, com a personagem de Mário – o problema da paternidade desconhecida ou não assumida. O conto, como o romance trata dos desencontros humanos. Um pai desconhece que teve um filho; pai este que vem a reencontrar a mãe do seu filho num asilo onde ambos se encontram instalados, fazendo a felicidade da sua companheira, sem que esta suspeite, ou saiba, que ele é o pai desaparecido.
Este filho que não conhece o pai tem saudades de Coimbra, onde começa a sua memória afectiva, saudades que se estendem até à aldeia da sua mãe (115), tal como isso acontece com o protagonista de Arneiro do Mar. Romance ao entardece.
No conto seguinte “Punheta com grelo à vista”, é também uma história de paternidade problemática, pois tem como protagonista José Medas Tavares, filho de um desses Medas Tavares abastados que outrora estendiam a sua fazenda por três concelhos da Gândara (119), filho enjeitado, conhecido pela alcunha de José Bosta, que se ficou pela escola de penar, cujo mestre foi a labuta diária (120) e se tornou num incorrigível mulherengo.
O penúltimo conto, o 11º., “Sardinhas na Telha” foi seleccionado para integrar a Antologia de Ficcionistas Gandareses.
Neste conto podemos ler desabafos de quem, ajudado por um burro, cresceu a esquadrinhar aqueles pinheirais à cata de pinhas (p131), trocados entre dois amigos de infância, o ti Bento e o Padre Jerónimo. O primeiro fora obrigado de calças arregaçadas e pés descalços, a rumar a sul, a engrossar o rancho de caramelos que batalhavam nas lezírias sadinas (p132), porque naquele tempo e na sua região só ao bácoro, em trabalho de ceva, era dado o luxo de comer e resfolgar.
Ali não medrava futuro. As sementes não enraizavam e a terra teimava em manter-se calva. Só o pessoal rachado, fincava raízes e não partia. A ranchada de filhos e o esfalfamento para lhe arrancar uns mimos cedo lhes chupavam o viço. Enquanto elas murchavam nas pariduras do destino, eles rabeavam pelas marinhas de sal, pelas pevides e pelas pinhas (p132).
Na Gândara, o destino de Bento e do seu burro de carga, explica o narrador, eram as pinhas. A alimária safava-se mas ele... Entre a apanha destas e a recolha de pevides de eira em eira, de aldeia em aldeia, a puxar por uma bicicleta a pedal, viesse o diabo…
 Este campo de batalha, juncado de ramos e pinhas secas, despojos de uma guerra pelas sopas há muito perdida que obrigou à debandada para as Américas do sul, era então chão mais catado do que piolhos em moleirinha de criança de berço. Palmilhava-o de lés a lés e desunhava-se a trepar aos pinheiros para encher os sacos com que, à tardinha, o burro, todo gaiteiro de tais alforges, encostava às padarias da região de Ílhavo (p133).
Neste remoer memórias e sofrer saudades, ficamos a saber que, mesmo sem vocação, por vontade do pai, o Jerónimo, aos doze anos, foi engolido pelo seminário. O cárcere, na sôfrega barriga dos seus muros altos e tristonhos, só apontava para o céu, a roubar-lhe a planura da aldeia onde se espojava à solta (p133). A prisão durou dois anos e o pai de Jerónimo logo o mandou tirar a recruta nas pinhas e o instrutor ia ser o Bento, perito com um ano de carreira (p. 134). Foi, no entanto, obrigado a voltar para o seminário que lá continuava com cama e mesa certas (p134); acabou acatando o regime de clausura: o pão era certo e a esperança sua aliada. Ordenou-se padre (p135).
Bento tinha herdado dos seus maiores, sem eira nem beira, os bens imateriais. Daquelas mãos brotavam saberes ancestrais. Ele e o bondoso e rústico sacerdote pelavam-se por sardinhas na telha.
 Estes aromas, emanados dos seus maiores, a que se atiram com a gula de quem saboreia um doce conventual, são património da região. O padre Jerónimo, defensor ferrenho da mesa regional, já consultara, nos tempos de ócio que um rebanho adestrado permitia, livros e colegas e não dava fé de tal ementa por esse Portugal fora (p136-137).
Prossegue o narrador, com voz ternurenta também, a explicação da paixão dos dois amigos nestes termos: Em festa de sardinhas, as pinhas vinham, inevitavelmente, à baila. O padre Jerónimo servia-as à mesa com lumes tão intensos no olhar como o que aquecera o forno. Eram as memórias afectivas a comandar o paladar (137).
O enraizamento do sacerdote e o orgulho pela sua terra são tais que magica a ideia de um monumento aos homens desse adorado rincão, mas o projecto não chega a ganhar raízes, pois o seu rebanho envergonhava-se do passado e parecia ter esquecido que fora a míngua arrastada de pão que obrigara um punhado de homens a esgaravatar na Venezuela e amealhar para fazer de uma terriola de burros e pinhas uma aldeia próspera (p137).
Como vemos, a tela negra do conto é a fome e miséria gandaresa, mas também os pequenos-grandes prazeres da vida, os aromas e sabores, o ar livre e a liberdade, o esforço e a sua poesia.
O último conto de No Reino dos Nabos “Tripas à Gandaresa mostra – utilizando a poética do to show, not only to tell, especialmente através do recurso mais abundante ao diálogo, vivíssimo, de resto, emprestando verosimilhança ao texto –  o conto mostra, dizia eu, como Cadete, para vingar uma injustiça sofrida, pôs ao léu (157) as tripas do Léu.
Cadete é um nome que ressurgirá em Gandarilhos de Napoleão. Assim como a temática da errância, que neste conto está consubstanciada em Léu, ourives ambulante por terras alentejanas:
Andarilhou por barrancos, chapadas, cumeadas, chaparrais, moitas, searas, atasqueiros e montes a espreitar oportunidades. Esquadrinhava as vendas e as casas de lavoura; tentava os cabreiros, os porcariços e os ovelheiros em tempos de venda do polvilhal; insinuava-se às criaditas; sondava a algibeira ao almocreve, ao boieiro e ao ganhão (154-155).
3 - Arneiro do Mar. Romance ao entardecer
O primeiro romance de Silvério Manata, Arneiro do Mar. Romance ao entardecer, tem igualmente capa e ilustrações de Zé Penicheiro. Esta parceria artística revela uma grande afinidade entre o artista plástico e o escritor, pois a capa do segundo romance também será confiada ao mesmo pintor. De resto, no capítulo “Prisioneira do Casulo que Tecera”, há uma leitura da estética do autor da capa e das ilustrações do romance, que é no fundo, também a de Silvério Manata, por via indirecta definida. No caderno de notas de Maria José, a propósito de uma viagem feita à volta de um painel de Mestre Zé Penicheiro, no átrio da Câmara, a professora consegue captar a Gândara, em toda a sua dimensão nestes termos:
O fundo do trabalho é um livro aberto: na página esquerda, o mar; na direita, a terra. Sem adornos supérfluos, porque a verdadeira mestria está na capacidade de ser simplificador da forma, estiliza o real e, lançando mão de alguns elementos simbólicos que caracterizam estes dois elementos da natureza, faz surgir dessa aparente simplicidade, por força da cor e do seu traço inconfundível, a região em toda a sua pujança. A força das gentes cujos horizontes alternam entre o barco e a carroça; a sardinha e o porco na ceva; a areia solta e a areia amansada pela enxada onde se impõe o verde do pinheiro bravo que há-de dar vida à embarcação e à carroça, ao palheiro…» (60).
Se este é o credo estético de Zé Penicheiro, ele é também o de Silvério Manata. De resto, a dedicatória do romance disso dá fé igualmente, pois ela assim reza:
A Mestre Zé Penicheiro, criador de telas e de afectos.
Uma outra passagem do romance oferece outra profissão de fé estética, que se pode aplicar em diferentes gradações a todas as obras de Silvério Manata, dos contos anteriores ao último romance. Por isso, me atardo no seu comentário.
A propósito do pensamento literário de Mário que projecta escrever um livro, o narrador escreve:
Sabia de alguns autores que lavram o papel em desventuras de terceira pessoa, demandando, nesse extrínseco desabafo escrito que mascara tormentos pessoais, ajuda para vencê-los. Vomitar aflições, mesmo encapuçadas em narrativas heterodiegéticas, ajuda a esconjurá-las. Sabia também que só relações de vivências tumultuosas ou fracassadas tinham história. Elas eram a matéria –prima para o enredo das páginas de um livro. Disso tinha a sua parte e o relato dos sobressaltos da sua vida seria uma óptima terapia para reconciliar-se com ela, a vida. Ia pôr mãos à obra (99).
Como se pode ver a literatura é definida como vómito de aflições, como desabafo para mascarar tormentos pessoais e desventuras, para ajudar a vencê-los , como terapia de reconciliação com a vida. A literatura é, no fundo, como autobiográfica, mesmo quando se apresenta com a máscara da terceira pessoa.
Isto penso eu igualmente e por isso me comprazo aqui a sublinhá-lo pelas palavras de Silvério Manata.
Numa passagem anterior, Mário, com sua natureza tímida e hesitante, indeciso sobre que atitude e linguagem a adoptar em relação à ex-mulher e ao filho de ambos a si mesmo faz esta reflexão: Ó pobre rapaz, cresce que o tempo dos rodriguinhos e dos violinos já lá vai (39).
Maria José, no seu caderno de apontamentos, também transcreve um diálogo em termos reais, nada eufemísticos, que a leva a auto-analisar-se e confessar:
A língua solta-se em vocabulário viril. Prefiro-o acutilante, carregado de expressividade a um léxico chocho, enrodilhador. Não vai a lado nenhum. Não sendo gratuito, o palavrão converte-se em palavra com alma e não choca a minha sensibilidade, dita feminina (64).
Aqui, Maria José, alter ego do autor, defende os supostos excessos de linguagem a que recorre e, à cautela, justifica-os.
Um excerto do quinto capítulo deste romance foi publicado na Antologia de Ficcionistas Gandareses, precedido por um cabeçalho que contextualiza o excerto e resume muito sinteticamente a narrativa. Citemo-lo pois esse resumo é feito pelo próprio romancista:
Em finais dos anos sessenta, Maria José, professora primária oriunda de Coimbra, chega a Arneiro do Mar, minúscula e pacata aldeia do litoral gandarês, e aí encontra Mário, a outra personagem central desta história. Através deles, dois espaços sociais e físicos diferentes vão ser confrontados. Do diálogo entre o meio urbano e o meio rural se constrói o enredo de Arneiro do Mar, romance ao entardecer (146).
No excerto em questão, o narrador e um caderno de notas da protagonista relatam as primeiras impressões do mundo provinciano que a nova professora de Arneiro do Mar vai encontrar.
Com efeito, logo depois de chegar à aldeia, Maria José ainda em tempo de ilusões pedagógicas, planificava o trabalho escolar e rabiscava os apontamentos no café, naquele mundo labrego, observada por uma  mesada de garanhões, já toldados pela força da cerveja preta (30). Acostumada a estudar nos cafés de Coimbra, prolongou esse hábito, que não sendo proibido, não era bem visto em Arneiro do Mar, provocando críticas sobre essas suas Modernices! (31)
Aquele mundo rural, comenta o narrador, avesso a reformas, só começaria a mandar paulatinamente às urtigas legados ancestrais daí a algum tempo, com a revolução que disparava cravos do cano das espingardas. Por enquanto, as heranças mouras eram visíveis até nos atavios das mulheres mais velhas: trajavam ainda um lenço e um chapéu circular, que tapavam o rosto quase por completo e as arabizavam. Eram vestígios seculares daquela gente do Norte de África que, mais que espalhar a morte em pelejas sangrentas como pretendem alguns, semeou uma cultura que se impôs pela sua vitalidade (31).
Continuando a observação de costumes, o narrador volta a comentar que era um mundo macho, vedado às mulheres, aquele que Maria José ia captando, dando voz à protagonista que apontava no seu caderno:
«Elas não têm assento na coisa pública: uma Assembleia de Freguesia; um grupo filantrópico; uma jantarada. Aqui em terra de sedimentação patriarcal, segue-se à risca o fundamentalismo de um catecismo emanado de dois poderes, o político e o religioso, que, em uníssono, clama a submissão das mulheres aos maridos e aos pais... à casa. Sai-se apenas para mourejar na terra. É gente que hibernou em atávicos sonos dos quais parece não querer acordar» (32).
No entanto, volta o narrador a comentar:
Mas este reino de varões era aparente. Maria José não sabia, por hora, que aquelas, mulheres encafuadas em casa, se metamorfoseavam. Paradoxalmente eram elas que, portas adentro, governavam com rédea curta o espaço familiar: criavam a ranchada de filhos; atavam em nó cego, que só elas sabiam desatar, os cordões da bolsa magra e eles, os seus homens, rabo enfiado nas pernas, vinham comer-lhes à mão, a esmolar uns tostões para as estroinices (32).
Uma das temáticas predominantes deste romance é a oposição ou complementaridade entre o campo e a cidade, mesmo se no final do livro o narrador parece afastar esta ideia.
Com efeito, no penúltimo parágrafo do romance, o narrador, que projecta escrever um livro sobre as suas vivências declara:
Não vai reinventar a Cidade e as Serras. Não pondera viver nenhuma versão actualizada da obra de Eça. Não se imagina o bom-serás endinheirado e romântico disponível para causas sociais (277).
Mas isto apenas significa que não quer ser um novo Jacinto na sua Tormes, que é como sabemos, a sua aldeia de Carapelhos, sendo a sua Paris, Coimbra.
Silvério Manata, ele mesmo, no cabeçalho que fez para o excerto deste romance publicado na Antologia de Ficcionistas Gandareses, resumindo o enredo do seu romance, contradiz a precedente citação, pois nele afirma, como já citei,  que do diálogo entre o meio urbano e o meio rural se constrói o enredo de Arneiro do Mar, romance ao entardecer (146).
A mesma leitura fez o editor Fernando Mão de Ferro, em texto assinado na badana da capa do livro – processo que não é dos mais comuns - , escrevendo que Silvério Manata revela neste seu livro uma imensa capacidade criativa, confrontando aspectos de vida citadina com as vivências da aldeia rural.
Manuel Cidalino Madaleno, igualmente numa badana, a da contracapa, assinalando o aparecimento, nos últimos anos, de uma tão surpreendente quão proficiente plêiade. Sobre o autor de Arneiro do Mar, romance ao entardecer, Cidalino Madaleno escreve:
Com a sobriedade que lhe é peculiar – e que contrasta com a exuberância da sua escrita – Silvério Manata tem já edificado o seu assento, de pleno direito, neste genuíno escol, nesta informal «Academia das Letras Gandaresas» que dá universalidade ao território definitivamente arrebatado ao recesso literário pelo pioneiro engenho de Carlos de Oliveira.
A aldeia onde se desenrola o romance é descrita no caderno de apontamentos de Maria José como uma metáfora de Portugal (220). Registando a profunda religiosidade dos habitantes de Arneiro do Mar e o seu fomento durante a ditadura salazarista, Maria José regista no seu caderno:(…) acudiu-lhe a conhecida trilogia em Efe – Fátima, Fado e Futebol – obra maior do Estado Novo que, estrategicamente, entorpecia o país. Arneiro do Mar, metáfora de Portugal, não era excepção quedando-se sobretudo pelo primeiro termo da trindade – Fátima – de quem era seguidor fervoroso (220).
A propósito dos contos, já assinalei alguma temática recorrente, como a dos andarilhos, a da paternidade problemática – dos progenitores que não deixam rasto ou não a assumem, ou, no campo estilístico, as situações picarescas ou a onomástica simbólica. Não insisto, por razões óbvias, e também porque voltarei ao assunto a propósito do novo romance.
No entanto, sem entrar em justificações que o tempo e a situação  não permitem, não deixarei de assinalar que a onomástica deste romance está carregada de simbologia, mesmo se não inteiramente assumida pelo autor. Do nome andrógino da protagonista feminina, Maria José ao Albuquerque que lhe faz a corte e que tem nome de conquistador, do despótico avô Água Fria à filha Constância, de Alcides a Pedro Chancudo, várias personagens do romance têm no seu crisma forte carga simbólica.
Em Arneiro do Mar Romance ao Entardecer, além da problemática da célula familiar desavinda, das relações triangulares, da estrutura familiar deslocada, aberta, provocada pelo divórcio e suas nefastas consequências, mas também suas vantagens, o romance aborda inúmeros temas, como o do ensino – de rumo ziguezagueante (101) -, o da linguagem, o das diferenças sociais, o da exclusão, o da miséria, o do controle político da sociedade com a ajuda de caciques e do clero, o da transformação geracional através de três gerações da família Água Fria, o da evolução do papel da mulher na sociedade, levando, por vezes, a uma quase inversão dos papéis que a sociedade tradicionalmente atribuiu aos dois sexos, como resultado da emancipação da mulher, o da militância política e sindical, o da emigração, o da igreja e das crendices religiosas, o da saudade em seus diversos registos, etc.
Há na narrativa uma enxurrada  de assuntos adjacentes e concomitantes trazida à baila por diferentes narradores com diferentes vozes e estatutos diversos.
 
4 – Gandarilhos de Napoleão
Como vimos, nos livros anteriores, há temas e personagens embrionários que se desenvolvem nas obras seguintes.
Assim o tema central deste romance já aparecia muito discretamente no romance anterior Arneiro do Mar Romance ao Entardecer.
A propósito de uns tesouros que o avô Água Fria encontrara na lagoa junto ao mar, testemunhos das Invasões Francesas do tempo do avô do vovô. De quando as forças Napoleónicas, dali da Serra do Buçaco, rondaram aqueles areais da Gândara, a propósito desses achados, reminiscências de estórias da História, o narrador evoca uma temática que vai ser o cerne do romance que nos reúne hoje aqui: Gandarilhos de Napoleão.
No capítulo “Devia ser um Trinca-Espinhas” de Arneiro do Mar Romance ao Entardecer, podemos, com efeito ler:
Certo, certo por aquelas bandas, o abastardamento de alguns nomes franceses a provar que o soldado raso preferiu desertar do derrotado exército de Napoleão e encontrar guarida no regaço de uma robusta gandaresa, a voltar, coberto de ignomínia, para a terra gaulesa (53).
Que melhor síntese do romance poderia eu fazer do que esta feita pelo próprio romancista, ainda antes de escrever o romance?
O tema do andarilhar atravessa todo o romance, num campo lexical vasto, que vai da designação dos soldados napoleónicos como caminhantes (42 e 44), andadeiros adestrados (45 e 135), caminheiros (47), máquinas de andarilhar (64), andarilhos da companhia (74), andarilhos de Napoleão (143), e a própria palavra andarilhar (45 e 153).
Uma outra árvore semântica é dos pobres-diabos, anti-heróis, obrigados a lazarar na sua travessia da Península Ibérica até se fixarem na região onde nos encontramos hoje para os conhecer melhor.
Barreira, começa por dizer ironicamente aos três foragidos franceses, que lhe pedem ajuda para solicitar acolhimento às gentes do vale do Mondego, que sendo ele também um desertor, lazarar-lhes à porta (123) seria o mesmo que pedir-lhes que por caridade cristã lhes limpassem o sebo. Quando chegam a Cadima, Barreira admite que dirigindo-se para o mar talvez consigam que os seus habitantes tenham piedade dos quatro lázaros (145). É Barreira ainda que compara  a sua sorte à do Lázaro da parábola de Lucas (191), pois da felicidade não colheu senão migalhas, migalhas da felicidade experimentada pela figura bíblica. Até os pobres habitantes de Arneiro do Mar onde se vão acoitar são referidos como lazarentos penitentes (187), tão míseros como a capela que os alberga.
Assim, podemos ver que há da parte do autor uma preocupação de lançar alicerces na narrativa, de dominar a estrutura do romance e o seu fluir para poder mais tarde desenvolver os comentários que justificam o título e a temática do romance. Com efeito, logo depois da comparação evangélica, no espírito de Barreira imediatamente aparece o outro Lázaro, parido num moinho de Tormes (191). Esse Lázaro, que, pelas suas fortunas e desventuras, ficou conhecido por Lazarilho. Barreira encontrara escondido num velho baú do Colégio, um exemplar do século XVI em castelhano (191).
Barreira leu o célebre romance onde encontrou herói do avesso que, nem de água nem de sal, é parente do bravo fidalgo que costuma atafulhar páginas e páginas com enredos de cavalaria. Barreira acha que dada a sua visão do mundo, mais cândida, não cabe por inteiro nessas páginas, mas não pode deixar de rever-se nesse anti-herói que tanto pena para ir escapando às agruras que teimam em não o largar (191).
No dia de Natal, depois de tirarem a barriga da miséria, Barreira interroga os seus amigos sobre a existência ou não, naqueles tempos de heróis arrebatados que renunciem à vidinha para correr atrás de um sonho, de um ideal (195). A resposta é negativa, acabando um deles por afirmar que nada neles poderá inspirar um autor, acrescentando que não mora neles a essência do romance de cavalaria, do herói que dá a vida por uma causa (195).
Barreira pergunta se alguém já ouviu falar em Lazarilho de Tormes e Frade responde que em Salamanca, quando bivacavam junto ao Tormes, tinha ouvido as altas patentes comentar o livro, provocando a curiosidade de Coquim e de Cadete que quiseram saber dos enredos.
Segue-se este diálogo, que encerra o capítulo com o mesmo título que o livro, e que o explica e justifica:
- Pelo que me dizem, a nossa vida escarrapacha-se nesse livro. Desde Auxerre, vimos lazeirando, por um longo caminho de dois anos, até aqui, até esta região gandaresa, como já tenho ouvido chamarem-lhe.
- Míseros de nós, não passamos de uns borra-botas do todo poderoso exército napoleónico!
- Filhos bastardos de uma campanha que nos atirou para estas areias.
- Andarilhos de Napoleão em busca de um reino gandarês!
- Lazarilhos da Gândara!
- Gandarilhos de Napoleão!(195-196)
Acabado o diálogo, comenta o narrador, pondo termo ao capítulo:
Por entre risadas, que lhes lustram ainda mais a barbela untada, aplaudem a caldeação lexical que melhor têmpera dará ao trocadilho do seu peregrinar. Vejam só, onde veio parar a tagarelice carregada! E, de língua já entaramelada, brindou-se à amizade, à utopia e à vida (196).
A capa deste novo romance também tem na portada um desenho de Zé Penicheiro, de expressivos traços brancos sobre fundo preto.
Como já acontecera com o romance anterior, também este traz numa das badanas um texto do editor Fernando Mão de Ferro. Num primeiro parágrafo, pode ler-se que o autor de Gandarilhos de Napoleão envolve os leitores não apenas no sacrifício brutal dos portugueses durante as invasões francesas, mas também, na reflexão sobre parte das tropas francesas, em que muitos jovens eram retirados da pacatez das suas famílias e aldeias e forçados a integrar o exército Napoleónico que invadiu a Península Ibérica.
No segundo e mais curto segmento do texto, o editor afirma que o escritor gandarês criou personagens psicologicamente muito ricas que se impõem ao leitor e dialogam repetidamente com ele sobre valores éticos do bem e do mal, da paz e da guerra.
No ultimo parágrafo, apontando o subgénero em que o romance se situa, Fernando Mão de Ferro assinala igualmente a sua universalidade construída com alicerces sólidos na realidade regional:
Com este romance histórico, Silvério Manata, embora abarcando uma tragédia universal – o conflito e o desentendimento dos homens e das nações – aproveitou a realidade histórica, que fez da Gândara o cenário efectivo de uma parte dos acontecimentos, para se manter fiel à matriz cultural, da qual tem sabido extrair os ingredientes da sua saborosa escrita e divulgar, ao longo da sua original carreira literária, a identidade singular de um povo que teima em manter traços indeléveis do seu rico património imaterial.
Registe-se que o editor, além de enaltecer as qualidades poéticas do romance, já assinala igualmente a existência de uma carreira literária, desta feita qualificada de original.
 
ONOMÁSTICA DAS PERSONAGENS E SUA SIMBOLOGIA
 
Não vou insistir na carga simbólica das criações manatianas, pois já o fui fazendo a propósito das outras obras, como viram. O que disse delas aplica-se, em parte, neste segundo romance.
Vejamos um exemplo. O ficcionado narrador republicano do manuscrito de 1910, que a si próprio se qualifica como um trolha das palavras (119), antecipando Saramago – mas Silvério Manata, o autor de 2010 já o conhece e quer homenageá-lo – , numa atitude de identificação fraterna, simbolicamente, reunindo num só nome todos os nomes, escreve:
O meu nome é Manuel Frade de Jesus Coquim Barreira Cadete . Sou todos os nomes porque em  todos estes heróis me revejo; nos quatro avós que deixei às portas de Coimbra enquanto, em aprumada homenagem, me estico Buçaco acima em almejos de roçar-lhes a têmpera. É na esperança de que não se perca a semente da memória que me aventuro pelas lavras da palavra; da voz manuscrita que louve este bravos ignorados por um protocolo pitosga, que um dia apearam canhangulos para charruar o mar mailas areias e a Ria que o afagam (188).
Do mesmo modo que os livros anteriores englobavam personagens com onomástica simbólica, este novo romance não foge ao uso.
Coquin, é uma alcunha que impuseram a David (20 e 80), deturpação de vieira, que bem se aplica a este andarilho, e que tem como significado também o de velhaco e desenrascado (21) ou desembaraçado (27).
Cadet era o benjamim de uma caterva de filhos de abastada lazeira, , sobrevivia à custa dos incertos trabalhos sazonais, não escapando, este pau para toda a obra, ao arganel de fome que frequentemente o cingia (27).
Jacques, o furtivo frade cirtescience, tem o mesmo crisma que o frère Jacques da célebre canção.
Cada um destes tês vai encontrar a sua Maria, todas com onomástica de forte conotação religiosa.
 Coquin conquista Maria da Graça, a filha de António Francisco Cação, disputada pelo galaroz (218) Fortunato, pícara personagem camiliana, uma espécie de Zé do Telhado gandarês, num episódio cheio de picardias, que leva o narrador a comentar: A quadrilha de Fortunato, ao entregar a alma ao criador, pusera o Seixo nos cornos da lua, mormente os quatro novos aldeões. O feito, digno de folha de cordel sanfonada por ceguinho habilitado, dava brado (227).
Cadete une-se a Maria da Conceição. Frade, que era frade mas não era capado (17) seduz Maria do Rosário e vai ser pai.
Barreira, seduz a moleira Maria dos Anjos.
 
LINGUAGEM e ESTILO
Linguagem chã, sem falsos pudores: Mas o valentão era filho de quatro nalgas como os demais e nem as anafadas partes impediram que um medinho de rachar se insinuasse pelo cu adentro,  subisse pela espinha e lhe esfriasse os ímpetos aguerridos (70).
Na praia de Mira o alvoroçado oceano numa madrugada acordou de cu virado para a lua (157).
A expressão é fervilhante, cheia de imagens, de ironia, que tão bem traduz a visão desencantada da vida das picarescas personagens. As situações picarescas são numerosas, de diversa índole, de linguagem, como acabei de dizer, mas também de cenários, de situações, de personagens, de ironia, e de tom burlesco, etc. Numerá-las levar-nos-ia a ficar aqui até ao fim das Festas de S. Tomé…
O estilo é disfemístico (232), mas variado, por vezes popular, coloquial, outras mais clássico, até ao exagero, como acontece com o diálogo empolado do frade francês com gosto arcaico, parodiando o amor cortês, mas em português vernáculo (241-242). No primeiro registo temos, por exemplo:
-  Como a areia abafava as passadas, que eram cada vez mais penosas no breu de não ver-se a ponta de um corno (153).
-  (…) parecia ter parido a galega (167).
 Outras vezes recorrendo a diálogos de uma grande expressividade e economia verbal, com vivacidade e naturalidade (86-87).
Por vezes terra a terra, por vezes poético:
-  Noite. A lua. Tímida, aconchega a manta negra dos penhascos aos homens que resfolgam (103).
-  Por força de tanto assoprar no fole cheios de sonhos, quando ajeitaram a mochila à cabeça na esperança do sono renitente, já eram mestres a moldar o futuro (106).
Ou desencantado, aparentemente paradoxal, antitético, quase oximorístico, realista:
-  Cadet começa a habituar-se ao cheiro da morte: é preciso viver (103).
-  (…) sai-lhes ao caminho um amaldiçoado sol radioso (107).
Para lhe dar vida não faltam as onomatopeias (92).
Estilo bastante plástico, goiesco, como acontece na descrição dos empalamentos (68-29 e 93).
Há um ou outro termo extemporâneo, anacrónico, um ou outro entusiasmo excessivo do autor, que não vale a pena elencar aqui, pois deles já dei parte ao Silvério, mas que de qualquer forma não desfeiam sobremaneira a narrativa.
 
TEMPO
A acção desenrola-se sobretudo durante as invasões napoleónicas, mas cobre muito episodicamente um período posterior, um século depois, quando é redigido o manuscrito que serve de base à narrativa e um outro século mais quando é encontrado o manuscrito que vai desencadear o romance.
 
ESPAÇO
A distribuição espacial do romance é vastíssima , indo da França, da região de Auxerre até à Gândara, em particular a Seixo, passando pela Espanha e Portugal no itinerário do exército francês e depois na debandada dos quatro gandarilhos.
Almeida, Viseu, Coimbra, Cantanhede e terras próximas, Mira e suas redondezas fazem parte do cenário do romance. Nesta vasta tela de fundo Seixo, e os lugares à volta ocupam um lugar privilegiado pois é aí que se vão fixar os andarilhos de Napoleão, feitos gandarilhos pelo feliz trocadilho criado por Silvério Manata.
É que, descrevendo os desastres de guerra, mostrando o avesso da utopia, Silvério Manata denuncia a hipocrisia tal qual o autor desconhecido do Lazarilho de Tormes já o fizera antes, apontando o caminho que à literatura se impunha em tempos difíceis em que prosperavam todo o tipo de trapaceiros.
 


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