Um filme de Tiago Pereira.
Gil Raro
"Sobre folclore e
ranchos...é um assunto delicado. É muito difícil porque custa ver pessoas em
cima de um palco. E começo logo por aí, em cima de um palco a dizer que estão a
representar os nossos antigos com fidelidade, coisa que é impossível. É
impossível naquele modo porque os ranchos não conseguem, como é que hei-de
dizer isto, os ranchos não conseguem representar com fidelidade porque não querem.
Porque existe mais que um sítio com prova isso em que parques temáticos,
aldeias reconstruídas, espaços reconstruídos ou construídos especificamente
para albergar cidades históricas para que se possa naquele sitio fazer
representações de recriações históricas fiéis e quando eu digo fiéis é
sinceramente fiéis, sem electricidade, sem microfones, sem luz eléctrica, sem
água corrente, sem nada disso. Os grupos não estão para isso e pecam logo por
aí porque estão, estão a dizer que estão a fazer como se fazia à 100 anos e não
estão! Efectivamente não estão.
E agora dentro dos
grupos circula que não é só cantar e dançar, não é só dançar e cantar, não é só
dançar e cantar, nem só o resto. É tudo! Tudo o que eles vão fazer um dia a
partir do momento que é um espectáculo não é fiel, não pode ser fiel. Para já o
espectador tem de participar, o espectador é que tem de sentir que é fiel e tem
de participar para sentir que é fiel. Depois os grupos têm de promover sítios e
espaços onde a fidelidade da representação à época tem de ser extrema,
loucamente extrema.
Desde o tecido que é
feito como à época, até à casa que é construída em taipa, ao pinheiro que é
deitado abaixo na quadra da lua, é serrado e cantado a cante da serra, e é
serrado com 5 ou 6 homens,é posto a secar às quadras da lua, é emprenhado e
posto nas paredes à moda tradicional, são feitas encavilhas feitas na forja,
são deitados fasquios, depois é deitada a terra, é deitado argamassa e é
deitado o reboco por cima, é feita a casa, é construído os móveis, isto é ser
fiel, isso é ser fiel e documentar isto tudo. Isso é que é o grande para mim é
que é o grande desafio de um grupo. Só que os grupos não se prestam a isso.
Porque para já dá trabalho depois é necessária uma partilha e um pesquisa muito
profunda de conhecimentos e os grupos guardam para si tudo aquilo que encontram
a sete chaves não partilham nada. Um partilha, outro ali e não partilha tudo,
nunca partilha tudo o que sabe. Nem se deve partilhar tudo o que se sabe
sempre, mas numa necessidade as coisas devem-se saber.
Depois a mim dançar e
cantar não me convence. Não me convence, para já não me convencem as danças, é
a primeira coisa que não me convence. Uma pessoa depois de um dia de trabalho,
numa romaria dançava horas seguidas com braços ao alto, assim super alinhados,
não dançavam. Dançavam, dançavam danças de roda e essas coisas porque é aquilo
que nós instintivamente nós fazemos é juntarmo-nos em roda. Porque é que há
danças de coluna aqui, danças de coluna acolá e depois toda a gente sabe, 5 ou 6
pares sabem todos dançar. Enquanto antigamente era quase tudo de rasto ou uns
contra os outros quando haviam homens e mulheres, nem um casal dançava às
vezes.
E tocatas é muito
bonito. Eu gosto muito quando os grupos começam a dizer “ah este traje, este traje
foi feito o mais fiel possível e depois vemos com instrumentos feitos todos
agora, todos modernos, caixas largas amplificadas, com apertos todo em,
cravalhames, não é o que se quer, tem outro nome mas em vez de ser cravalhames
de madeira são cravalhames de plástico e metal a apertar aquilo tudo. Depois é
simples de afinar as cordas, as cordas já vêm todas emparelhadas, já vêm
naqueles saquinhos todos certos, não é qualquer corda como era antigamente.
Parte uma corda já não toca na viola, pronto já não se toca na viola e
antigamente com duas ou três cordas serviam.
Eu acho que também tem
haver com a humildade das pessoas porque muitas vezes os grupos é o potencial
teatro para as pessoas que elas pensam que podem ir lá e serem todos ricos. Os
grupos têm sempre, às vezes terras que só tinham 3 ou 4 casas de lavoura, têm 5
ou 6 trajes de lavoura de grandes lavradores, de gente abastada e ninguém quer
vestir roupa de trabalho. E outra coisa, acho vergonhoso quando rebentam calças
e a calça é nova, os dois panos são novos, os dos remendos, nunca usados. Isto
é uma machadada para os grupos porque é sinal que não trabalham. Onde é que
estão os milhos? Agora estamos na época das desfolhadas. Algum deles lavrou o
campo? Gradou o campo? Semeou o campo? Sachou? Arrendou? E mondou? Ninguém fez
isso! Foram só apanhar o milho que já estava semeado por máquinas e por essas
coisas todas. Quem é que pegou numa junta de vacas e fez uma lavra? Quem é que
pode dizer que este milho foi do princípio ao fim tratado como era há 100 anos
atrás? Os grupos querem as desfolhadas e não é desfolhadas com antigamente que
eram pilhas de milho até ao tecto. São um grupo de desfolhadas e depois o resto
da noite a dançar. (…) dança-se muito, trabalho, não é? Pega nele?
– Conta a história da saia.
– Ah do saiote? Isso é,
isso é, quem não usa não é mestre e os ranchos padecem disso, por não usarem
não são mestres. Mas eu também não o sou! Sei daquilo que me dá jeito ou que
não dá mas foi constante aprendizagem também. Da roupa e sempre que mando fazer
ou faço uma peça nova melhoro-a e adequo mais à função que é e aquilo que me dá
jeito.
E certo dia uma
rapariga pediu-me para fazer um saiotezito como aqueles que nós vemos amiúde
nos grupos do Minho. Assim chegadinho à perna com quase palmo e meio de renda,
até parece que foram sacados dos guardas-camas. E eu disse:
- Oh menina eu não
faço. Não faço porque não concordo com isso, não acredito.
E ela:
- Podia fazer porque
elas usavam isso.
- Oh menina, desculpe a
menina vai, a menina é menstruada? (Antigamente até se dizia que eram
assistidas). A menina é assistida? Já experimentou andar sem cuecas ou sair sem
os entapamentos que se usam agora? E usar só essa saiazita que quer para limpar
a menstruação? Se não usou, use. E depois vai-me dizer se preferia limpar a
menstruação a pano ou se prefere limpar a rendas. E daí vai os saiotes todos,
camisas, aquelas camisas ajustadas à perna? Não pode! Não pode porque as
mulheres quando eram menstruadas puxavam uma fralda para cima, uma fralda para
trás e prendiam-nas. Porque é que se chama fralda a uma camisa.
A gente vê os grupos,
alguns deles trazem ceroulas, trazem e mesmo assim vêm assim com ela toda
arregaçada para cima que é para ver, toda a gente ver que tem ceroulas. Para
quê? Se os homens não iam, nem sequer lavrar, iam com a ceroula para baixo se
tivessem de arregaçar a calça também arregaçavam a ceroula para cima. Anda a
ceroula para baixo, para quê? Só para resguardar as calças? A ceroula também
não é de resguardo? A guardar é tudo que se possa proteger. E outras coisas. Os
grupos pecam por aí, por não usarem, não usam nas alturas adequadas e não
promovem dos grupos, terem uma sede com espólio etnográfico, nem promovem
actividades que não sejam só esta superficialidade de vindimas, essa
superficialidade de desfolhada, às vezes de vez em quando vemos o linho e eu
tiro o chapéu a alguns grupos que fazem o processo do linho porque tem que se
lhe diga o processo, não é? Porque é que poucos grupos o fazem? Num país em que
o linho abunda desde o Norte ao Sul porque é que só um ou outro grupo é que faz
o processo do linho? Porque dá trabalho, da semeia até ao fiar e até o pôr numa
manta. Por isso é que os grupos não fazem.
E romarias? A que
romarias é que eles vão na nossa terra? Não vão. O Douro é por excelência a
terra das romarias e eu à minha porta não faltam romarias num raio de 30 km. E
o povo fazia-as todas, fazia-as todas e os grupos agora vão? Se houver dinheiro
para um autocarro, vão se fulano e sincrano fôr, e se for lá mais alguém e para
se encontrarem. Já ninguém vai por devoção. Também não é preciso cada um tem a
sua. Agora ir à romaria, ia-se a pé, vinha-se a pé, ia-se e vinha-se com
condências cheias de comida, nem que fosse só pão mas elas iam cheias, não iam
vazias.
Porque é que às vezes a
gente vê grupos, porque há grupos que se esmeram mais e outros que se esmeram
menos, mas mesmo os que se esmeram a meu gosto não porque é o caminho a ir. O
caminho dos grupos está na construção de um sítio onde possam recriar as
actividades e não num palco, num palco não. Os grupos que metam na cabeça que
num palco nunca vão conseguir recriar nada. Nem é um dedo mais fiel, nem dois
dedos mais fiel pelo facto de trazer saias mais compridas ou mais curtas,
usarem mais saiotes, por se dedicarem mais ou se dedicarem menos, a pesquisar
mais ou menos. Não é nem mais fiel nem que menos do que um grupo que seja tipo
consoadas, vai todo igual, seja tipo leilões, aqueles grupinhos que ainda se
vê, todos iguaizinhos. Esses dois grupos são iguais porque não vão à raíz à base,
por isso não vale a pena andar aí a criticar “Ah olha para aquele grupo parece
um rancho de leilões”, e mais não sei o quê, “ainda não passou daquilo”.
A única coisa mudou foi
o seu traje e às vezes as canções, não apresentam nada de novo. E essa moda agora
de fazer quadros etnográficos, feiras, romarias e outras actividades em cima do
palco, para não ser só cantar e dançar. Isso é o laço, é o laço da questão, é o
que está mais acima, e que é o mais fácil de resolver. Fazes uma feira, vês uma
data de pessoas lá, e entras na feira e depois começa um baile, e onde é que
numa feira se vai lá? Só se for numa romaria que tem a feira que isso acontece.
Agora nas feiras quinzenais, mensais e aquelas feiras de gado que é isso que
são as verdadeiras feiras que eles pretendem recriar, não haviam danças nem
nada disso. Que é que havia? Havia era vender e comprar e à noite vir para casa
porque no dia a seguir é trabalho.
Isso é que chateia,
chateia porque os grupos dizem depois, depois há uns quantos doutores no meio disto
tudo. Uma vez um disse-me:
- Você está a dizer
isso mas olhe que eu fiz uma pós-graduação nisso. Uma pós graduação em folclore
que eu percebo disto.
E eu disse:
- Olhe, na minha terra
doutores são os da mula russa.
– O que é folclore
então?
- Quer a gente goste
quer a gente não goste, até eu coloco muitas questões sobre o assunto, existe
uma entidade que se chama UNESCO que deve lá ter pessoas que são no minimo
competentes para definir ao longo destes anos todos que se …. um determinado,
uns parâmetros, uma quantidade determinada de parâmetros para definir o que é
folclore e são 4 salvo erro. Um é a passagem oral; outro é a dinamicidade,
estar vivo; outro é a aceitação colectiva; e acho que mais um ou outro, eu não
posso precisar agora.
Mas o grupos até
cumprem isso tudo menos na parte de estar viva. Porque o facto de estarmos em
cima de um palco a cantarmos cantigas que se cantavam à 10, 20, 30, 40, 50,
100, 200 anos que vêm do nosso cancioneiro não faz com que elas estejam mais
vivas. Não deixa de ser uma representação. Só é vivo quando entrar no seio da
nossa vida actual, é quando nós vamos pelo caminho e traulitamos esses
romances, é quando vamos pelo caminho e cantamos essas canções. Isso é que
manter uma cultura viva, não é através de uma recriação histórica que é apenas
um gozo teatral com uma componente histórica, é apenas isso, é um saudosismo.
Até podemos dizer que é um saudosismo de um tempo que a gente até nem viveu mas
é próprio de uma cultura querer, querer louvar os seus antecessores.
Dizia eu que não é vivo
porque nós não tomamos na sua, no nosso dia-a-dia. E uma grande prova disso é
que não ouvimos os grupos a cantar romances. Passam 20, 30, uma hora, minutos,
uma hora em cima de um palco e não páram para cantar um romance de uma ponta à outra.
Porque isso exige duas coisas. Pois isso exige que uma pessoa saiba, exige
prender a audiência e como aquilo é espectáculo barato puro e duro não se canta
isso, porque se não as pessoas vão-se embora, porque as pessoas não querem
saber. Depois o grupo não é bom porque não deu espectáculo e depois porque as
pessoas não sabem o romance de uma ponta à outra. Porque não cantam no seu
dia-a-dia.”