Façam o maior esforço, possível, para estarem vigilantes.
Quem não ler fica mais pobre...
Do Mural de Lourdes dos Anjos: Quando os meninos me pediam "papel macio pró
cu e roupa boa prá gente"…Um dos textos que mais me custou a
escrever e por isso tem mais lágrimas do que palavras.
“Estávamos
ainda no século XX, no longínquo ano de 1968, quando a vida me deu oportunidade
de cumprir um dos meus sonhos: ser professora. Dei comigo numa escola
masculina, ali muito pertinho do rio Douro, na primeira freguesia de Penafiel,
no lugar de Rio Mau.Era tão longe, da minha rua do Bonfim, não podia vir para
casa no final do dia, não tinha a minha gente, e eu era uma menina da cidade
com algum mimo, muitas rosas na alma, e tinha apenas 18 anos. Nada me fazia
pensar que tanta esperança e tanta alegria me trariam tanta vida e tantas
lágrimas. Os meninos afinal eram homens com calos nas mãos, pés descalços e um
pedaço de broa no bolso das calças remendadas.
As
meninas eram mulheres de tranças feitas ao domingo de manhã antes da missa, de
saias de cotim, braços cansados de dar colo aos irmãos mais novos, e de rodilha
na cabeça para aguentar o peso dos alguidares de roupa para lavar no rio ou dos
molhos de erva para alimentar o gado.
As
mães eram mulheres sobretudo boas parideiras, gente que trabalhava de sol a sol
e esperava a sorte de alguém levar uma das suas cachopas para a cidade,
“servir” para casa de gente de posses. Seria menos uma malga de caldo para
encher e uns tostões que chegavam pelo correio, no final de cada mês.
Os
homens eram mineiros no Pejão, traziam horas de sono por cumprir, serviam-se da
mulher pela madrugada, mesmo que fosse no aido das vacas enquanto os filhos
dormiam (quatro em cada enxerga), cultivavam as leiras que tinham ao redor da
casa, ou perto do rio e nos dias de invernia, entre um jogo de sueca e duas
malgas de vinho que na venda fiavam até receberem a féria, conseguiam dar ao
seu dia mais que as 24 horas que realmente ele tinha. Filhos, eram coisas de
mães e quando corriam pró torto era o cinto das calças do pai que “inducava” …
e a mãe também “provava da isca” para não dizer amém com eles…E os filhos
faziam-se gente.
E era
uma festa quando começavam a ler as letras gordas dum velho pedaço de jornal
pendurado no prego da cagadeira da casa…o menino já lia.. ai que ele é tão
fino… se deus quiser, vai ser um homem e ter uma profissão!
Ai
como a escola e a professora eram coisas tão importantes!
A
escola que ia até aos mais remotos lugares, ao encontro das crianças que afinal
até nem tinham nascido crianças…eram apenas mais braços para trabalhar, mais
futuro para os pais em fim de vida, mais gente para desbravar os socalcos do
Douro, mais vozes para cantar em tempo de colheitas.
E os
meninos ensinaram-me a ser gente, a lutar por eles, a amanhar a lampreia, a
grelhar o sável nas pedras do rio aquecidas pelas brasas, a rir de pequenas
coisas, a sonhar com um país diferente, a saber que ler e escrever e pensar não
é coisa para ricos mas para todos, para todos.
E por
lá vivi e cresci durante três anos e por lá fiz amigos e por lá semeei algumas
flores que trazia na alma inquieta de jovem que julgava conseguir fazer um
mundo menos desigual.
E foi
o padre António Augusto Vasconcelos, de Rio Mau, Sebolido, Penafiel, que me foi
casar ao mosteiro de Leça do Balio no ano de 1971 e aí me entregou um envelope
com mil oitocentos e três escudos (o meu ordenado mensal) como prenda de
casamento conseguida entre todos os meus alunos mais as colegas da escola mais
as senhoras da Casa do Outeiro. E foi na igreja de Sebolido que batizou o meu
filho, no dia 1 de janeiro de 1973.
E é
deste povo que tenho saudades. O povo que lutou sem armas, que voou sem asas,
que escreveu páginas de Portugal sem saber as letras do seu próprio nome.
Hoje,
o povo navega na internet, sabe a marca e os preços dos carros topo de gama,
sabe os nomes de quem nos saqueia a vida e suga o sangue, mas é neles que vai
votando enquanto continua á espera de um milagre de Fátima, duns trocos que os
velhos guardaram, do dia das eleições para ir passear e comer fora, de saber se
o jogador de futebol se zangou com a gaja que tinha comprado com os seus
milhões, e é claro de ver um filmezito escaldante para aquecer a sua relação
que estava há tempos no congelador.
As
escolas fecharam-se, os professores foram quase todos trocados por gente que
vende aulas aqui, ali e acolá, os papás são todos doutores da mula russa e
sabem todas as técnicas de educação mas deseducam os seus génios, os pequenos
/grandes ditadores que até são seus filhinhos e o país tornou-se um fabuloso
manicómio onde os finórios são felizes e os burros comem palha e esperam pelo
dia do abate.
Sabem
que mais?!
Ainda
vejo as letras enormes escritas no quadro preto da escola masculina, ao final
da tarde de sábado, por moços de doze e treze anos com estes dois pedidos que
me faziam: “Professora vá devagar que a estrada é ruim, e não se esqueça de
trazer na segunda-feira, papel macio pró cu e roupa boa dos seus sobrinhos prá
gente”.
Esta
gente foi a gente com quem me fiz gente.
Hoje,
não há gente… é tudo transgénico .
O povo
adormeceu à sombra do muro da eira que construiu mas os senhores do mundo,
estão acordadinhos e atentos, escarrapachados nos seus solários “badalhocamente”
ricos e extraordinariamente felizes porque inventaram máquinas e reinventaram
novos escravos.
Dizem
que já estamos no século XXI...”
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