A arte de escrever
para idiotas
Por Marcia Tiburi e
Rubens Casara
Para
aqueles que não lerão este artigo
Em nossa cultura intelectual e
jornalística surge uma nova forma retórica. Trata-se da arte de escrever para
idiotas que, entre nós, tem feito muito sucesso. Pensávamos ter atingido o
fundo do poço em termos de produção de idiotices para idiotas, mas proliferam
subformas, subgêneros e subautores que sugerem a criação de um nova ciência.
Estamos fazendo piada, mas quando se trata
de pensar na forma assumida atualmente pela “voz da razão” temos que parar de
rir e começar a pensar.
Artigos ruins e reacionários fazem parte
de jornais e revistas desde sempre, mas a arte de escrever para idiotas vem se
especializando ao longo do tempo e seus artistas passam da posição de retóricos
de baixa categoria para príncipes dos meios de comunicação de massa.
Atualmente, idiotas de direita tem mais espaço do que idiotas de esquerda na
grande mídia. Mas isso não afeta em nada a forma com que se pode escrever para
idiotas.
Diga-se, antes de mais nada, que o termo
idiota aqui empregado guarda algo de seu velho uso psiquiátrico. Etimologicamente,
“idiota” tem relação com aquele que vive fechado em si mesmo. Na psiquiatria, a
idiotia era uma patologia gravíssima e que, em termos sociais, podemos dizer
que continua sendo.
Uma tipologia psicossocial entra em jogo
na história, baseada em dois tipos ideais de idiotas: oidiota de raiz,
dentre os quais se destaca a subcategoria do idiota representante do
conhecimento paranoico, e o neo-idiota, com destaque para o
“idiota” mercenário que lucra com a arte de escrever para idiotas.
Vejamos quem são:
1- O Idiota
de raiz é fruto de um determinismo: ele não pode deixar de ser idiota.
Seja em razão da tradição em que está inserido ou de um déficit cognitivo,
trata-se de um idiota autêntico.
O Idiota de raiz divide-se em três
subtipos:
1. 1 – Ignorante orgulhoso: não se abre à experiência do conhecimento. Repete
clichês introduzidos no cotidiano pelos meios de informação que ele conhece, a
televisão e os jornais de grande circulação, em que a informação é controlada.
Sua formação é “midiatizada”, mas ele não sabe disso e se orgulha do que lhe
permitem conhecer. No limite, o ignorante orgulhoso diz “sou fascista”, sem
conhecer a experiência do fascismo clássico da década de 30 e o significado
atual da palavra, assim como é capaz de defender sem razoabilidade alguma
ideias sobre as quais ele nada sabe. Um exemplo muito atual: apesar da
violência não ter diminuído nos países que reduziram a maioridade penal, a
ignorância da qual se orgulha o idiota, o faz defender essa medida como solução
para os mais variados problemas sociais. Ele se aproxima do “burro mesmo”
enquanto imita o representante do conhecimento paranoico, apresentados a
seguir.
1.2 – “Burro mesmo”: não há muito o que dizer. Mesmo com informação
por todos os lados, ele não consegue juntar os pontinhos. Por exemplo: o “burro
mesmo” faz uma manifestação “democrática” para defender a volta da ditadura.
Para bom entendedor, meia palavra…
1.3 – Representante do conhecimento
paranoico: tendo estudado ou sendo autodidata, o
representante do conhecimento paranoico pode ser, sob certo aspecto, genial.
Freud comparava, em sua forma, a paranoia a uma espécie de sistema filosófico.
O paranoico tem certezas, a falta de dúvida é o que o torna idiota. Se
duvidasse, ele poderia ser um filósofo. O conhecimento paranoico cria monstros
que ele mesmo acredita combater a partir de suas certezas. O comunismo, o
feminismo, a política de cotas ou qualquer política que possa produzir um
deslocamento de sentido e colocar em dúvida suas certezas, ocupa o lugar de
monstro para alguns paranoicos midiaticamente importantes.
Curioso é que o representante do
conhecimento paranoico pode parecer alguém inteligente, mas seu afeto paranoico
o impede de experimentar outras formas de ver o mundo, abortando a potência de
inteligência, que nele é, a todo momento, mortificada. Isso o aproxima do
“ignorante orgulhoso” e do “burro mesmo”.
Em termos vulgares e compreensíveis por
todos: ele é a brochada da inteligência.
2 – O neo-idiota: o neo-idiota poderia não ser um idiota, mas sua
escolha, sua adesão à tendência dominante, o coloca nesse lugar. Não se pode
esquecer que, além de cognitiva, a inteligência é uma categoria moral. O
neo-idiota não é apenas um idiota, mas também um canalha em potencial.
Há dois subtipos de neo-idiota:
2.1 – O “idiota” mercenário quer ganhar dinheiro. Ele serve aos interesses
dominantes, mas é um idiota como outro qualquer, porque não ganha tanto
dinheiro assim quando vende a alma.
Nessa categoria, prevalece o mercenário
sobre o idiota. Por isso, podemos falar de um idiota entre aspas. Ganha
dinheiro falando idiotices para os idiotas que o lerão. Seu leitor padrão
divide-se entre o “burro mesmo” e o “idiota cool”. Ele escreve aquilo que faz o
“burro mesmo” pensar que é inteligente. O idiota cool, por sua vez, se sente
legitimado pelo que lê. O que revela a responsabilidade do idiota mercenário no
crescimento do pensamento autoritário na sociedade brasileira. Apresentar Homer
Simpson ou qualquer outro exemplo de “burro mesmo” como modelo ideal de
telespectador ou leitor é paradigmático nesse contexto.
2.2 – O “idiota cool” lê o que escreve o idiota mercenário. Repete
suas ideias na esperança de ser aceito socialmente. De ter um destaque como
sujeito de ideias (prontas). Ele gosta de exibir sua leitura do jornal ou do
blog e usa as ideias do articulista (do representante do conhecimento paranoico
ou do idiota mercenário) para tornar-se cool. Ele segue a tendência dominante.
Ao contrário do “burro mesmo”, nele sobressai o esforço para estar na moda.
Como, diferentemente dos seus ídolos, ele não escreve em jornais ou blogs
famosos, ele transforma o Facebook e outras redes sociais no seu palco.
Diante disso, temos os textos produzidos a
partir da altamente falaciosa arte de escrever para idiotas. O sucesso que
alcançam tais textos se deve a um conjunto de regras básicas. Identificamos
dez, mas a capacidade para escrever idiotices tem se revelado engenhosa e não
deve ser menosprezada:
1- Tratar como idiota
todo mundo que não concorda com as idiotices defendidas. O texto é construído a
partir do narcisismo infantil do articulista. O autor sobressai no texto, em
detrimento do argumento. Assim ele reafirma sua própria imagem desqualificando
a diferença e a inteligência para vender-se como inteligente.
2- Não deixar jamais que
seu leitor se sinta um idiota. Sustentar idiotices com as quais o leitor (o
burro mesmo, o ignorante orgulhoso e o idiota cool) se identifique, o que faz
com que o mesmo se sinta inteligente.
3- Abordar de forma
sensacionalista qualquer tema. Qualquer assunto, seja socialmente relevante ou
não, acaba sendo tratado de maneira espetacularizada.
4- Transformar temas
desimportantes em instrumentos de ataque e desqualificação da diferença. Por
exemplo, a “depilação feminina” já foi um assunto apresentado de modo
enervante, excitante, demonizante e estigmatizante. Nesse caso, o preconceito
de gênero escondeu a falta de assunto do articulista.
5- Distorcer fatos
históricos adequando-os às hipóteses do escritor. Em uma espécie de perversão
inquisitorial, o acontecimento acaba substituído pela versão distorcida que
atende à intenção do autor do texto para idiotas.
6- Atacar alguém. Este é
um dos aspectos mais importantes da arte de escrever para idiotas. A limitação
argumentativa esconde-se em ataques pessoais. Cria-se um inimigo a ser
combatido. O inimigo é o mais variado, mas sempre alguém que representa, na
fantasia do escritor, o ideal contrário ao dos seus leitores (os idiotas: o
burro mesmo, o ignorante orgulhoso e o idiota cool).
7- Reduzir tudo a uma
visão maniqueísta. Toda complexidade desaparece nos textos escritos para
idiotas. O mundo é apresentado como uma luta entre o bem e o mal, o certo
e o errado, o comunismo e o capitalismo ou Deus e o Diabo.
8- Desconsiderar
distinções conceituais. Nos textos escritos para idiotas, conservadores são
apresentados como liberais, comunistas são confundidos com anarquistas, etc.
9- Investir em clichês e
ideias fixas. Clichês são pensamentos prontos e de fácil acesso. Sem o esforço
de reflexão crítica, os clichês dão a sensação imediata de inteligência. Da
mesma maneira, o recurso às ideias fixas é uma estratégia para garantir a
atenção do leitor idiota (o burro mesmo, o ignorante orgulhoso e o idiota cool)
e reforçar as “certezas” em torno das hipóteses do escritor (nesse particular,
Goebbels, o chefe da propaganda de Hitler, foi bem entendido).
10-Escrever mal. A pobreza vernacular e as
limitações gramaticais são essências na arte de escrever para idiotas. O leitor
idiota não pode ser surpreendido, pois pode se sentir ofendido com algo mais
inteligente do que ele. Ele deve ser capaz de entender o texto ao ler algo que
ele mesmo pensa ou que pode compreender. Deve ser adulado pela idiotice que já
conhece ou que o escritor quer que ele conheça.
(Para além do que foi identificado acima,
fica a questão para quem deseja escrever para idiotas: como atingir a pobreza
essencial na forma e no conteúdo que concerne a essa arte?)
A arte de escrever para idiotas constitui
parte importante da retórica atual do poder. Saber é poder, falar/escrever é
poder, e o idiota que fala e é ouvido, que escreve e é lido, tem poder. O
empobrecimento do debate público se deve a essas “cabeças de papelão”, fato que
é identificado tanto por pensadores conservadores quanto por progressistas.
O grande desafio, portanto, maior do que o
confronto reducionista entre direita e esquerda, desenvolvimentistas e
ecologistas, governistas e oposicionistas, entre machistas e feministas, parece
ser o que envolve os que pensam e os que não pensam. Sem pensamento não há
diálogo possível, nem emancipação em nível algum.
Se não houver limites para a idiotice, ao
contrário da esperança que levou a escrever esse texto, resta isolar-se e
estocar alimentos.