terça-feira, abril 22, 2014

40 anos depois

Pacheco Pereira "Quem pena com os excessos do PREC é quem não gostou do 25 de Abril"
40 anos depois da revolução, nenhuma decisão é tomada pelo governo e o parlamento contra os interesses dos banqueiros

Pacheco Pereira organizou a exposição da Assembleia da República que assinala os 40 anos da Revolução. A ideia presente no trabalho é a da construção da democracia num processo de conflito que ainda não acabou. Falemos então disso.
Em entrevista ao i, o secretário de Estado Pedro Lomba afirmou que a acção do governo está a recuperar "o espírito do 25 de Abril inicial". Concorda?
O senhor secretário de Estado Pedro Lomba não faz a mínima ideia do que foi o 25 de Abril . Essa tentativa à posteriori de encontrar na acção do actual governo alguma coisa que tenha a ver com as condicionantes e as circunstâncias do 25 de Abril é do domínio da ficção política.
Mas não pode haver um ponto de vista de uma direita liberal que considere que a "libertação" da economia de um suposto domínio do Estado é algo que podia estar contido no 25 de Abril e que teria sido abastardado pelo processo revolucionário?
Mas eu não vejo é qualquer libertação da economia em relação ao Estado, bem pelo contrário, vejo um Estado que exerce uma pressão fiscal sobre os cidadãos como nunca se viu. Um Estado que utiliza o fisco no limite das liberdades e no limite dos direitos: inverte o ónus da prova e que trata das pessoas de uma maneira inaceitável. Há uma cultura de prepotência perante o cidadão comum. Mais, há até a entrada num domínio perigoso: Se hoje houvesse uma polícia política ela nem precisaria de nova legislação, bastava consultar o fluxo de facturas do fisco, para saber o que eu faço o dia inteiro: o que eu como, o que eu consumo. Cruzando com os dados do multibanco, tudo estaria disponível. Como nós não temos uma cultura contra estes abusos do Estado, que muitas vezes existem apenas para esconder a sua incompetência e negligência, naquilo que devia ser a verdadeira função do fisco: a máquina do Estado parece ineficaz em relação aos poderosos que devem milhões de euros, permitindo a prescrição dessas cobranças, mas isso não retira, os poderosos, das mesas de convívio dos políticos, enquanto que qualquer desgraçado que deva 200 ou 300 euros ao fisco, fica com a vida completamente destruída.
Mas essa cultura vai para além da administração fiscal?
O fisco é apenas um exemplo, a maneira como muitos dos processos económicos são dirigistas, nalguns aspectos ainda mais que no maior dos pesadelos do socialistas, a dissolução de direitos sociais e de aquilo que são garantias da própria sociedade, são factores que reforçam o Estado.
Mas de qualquer forma não assistimos a um processo de privatização do sector empresarial do Estado?
As privatizações seriam legítimas num Estado democrático se fossem efectivamente transparentes. O que acontece é que o processo de privatizações não é de todo transparente, apesar da comunicação social ter repetido, sem verificar, as auto-afirmações de transparência dos membros do governo. Repare que foi preciso esperar muito tempo, para saber, na privatização mais importante, a da EDP, que não só incluía obrigações do Estado que não era conhecidas à época da privatização, como há todo um conjunto de práticas de inside trading durante esse processo. Por exemplo, a REN, activo que qualquer Estado enumera na sua reserva estratégica, foi privatizada com o ridículo da lei destinada a proteger todas as áreas estratégicas só ter aparecido depois de se terem verificado todas essas privatizações importantes.
Mas isso é uma crítica às privatizações
A crítica não é sobre privatizar, mas o que o Estado privatiza e como o faz. E, sobretudo, o facto de privatizar dentro de um círculo de poder nefasto para a nossa democracia. O círculo de poder daquelas pessoas que saltitam entre os escritórios de advogados, as consultoras financeiras, a vida política, os bancos e grandes grupos nacionais. Neste processo aparecem, ao mesmo tempo, como responsáveis pela venda e responsáveis pela compra. E em alguns casos as comissões de acompanhamento que foram criadas só reúnem depois do processo estar decidido, e em muitos casos enunciam a circunstância, que pelos vistos parece natural, que muitas empresas foram vendidas sem sequer haver uma avaliação sobre o seu valor.
Este tipo de comportamentos não justifica os resultados de uma sondagem do i sobre as elites, em que os pronunciados consideram que os políticos da ditadura eram mais honestos e preparados que os governantes actuais?
Essa sondagem tem dois aspectos: uma denúncia da corrupção actual e da percepção que as pessoas têm da corrupção e, por outro lado, revela uma ignorância sobre o passado, que resulta em grande parte da protecção que a censura deu aos políticos do antigo regime: quem conhece os documentos da censura sabe que o mundo da corrupção económica, da violência, da pedofilia, de uma perturbação quase endémica da sociedade portuguesa existia antes do 25 de Abril, era escondido. As pessoas tendem a mitificar esse passado, como sendo um tempo sem crime, nem violência e corrupção, quando de facto não era assim.
Os grandes grupos económicos que prosperaram no antigo regime e foram protegidos pelas leis do condicionamento industrial dominam grande parte da nossa economia actual. Isso não faz que do ponto de vista das elites e do poder estejamos numa situação muito semelhante?
Não, não penso. Na análise que se faz antes do 25 de Abril e depois, eu nunca me centro naquilo que se apelida de regime económico, se quiser acerca de como funciona a economia capitalista. Centro-me, em primeiro lugar, na questão das liberdades e do escrutínio. A democracia exige o primado da lei. As pessoas muitas vezes pensam que a democracia é apenas o voto, não: são as eleições e o primado da lei. Os problemas que eu levanto em relação às privatizações é a constituição dessa elite blindada, que se desloca de ministro para administrador, de uma grande empresa ou de um escritório de advogados, que presta serviços aos governo na mesma área que fez a privatização. Isso é que é grave, porque tem que haver uma clara separação entre quem decide sobre o bem público e quem é beneficiado do ponto de vista económico com a sua venda. O que não existe em Portugal, e isso é muito preocupante para a democracia. É preciso uma clara separação entre quem decide e o poder económico.
Mas isso não era o que acontecia anteriormente?
Não é bem assim. Eu não gosto de comparar situações pouco comparáveis: o próprio condicionamento industrial tinha muitos críticos no antigo regime e ele foi feito para proteger duas ou três indústrias pesadas que se consideravam necessárias para a independência e soberania portuguesa.
O facto do condicionamento industrial ter gerado em Portugal uma situação de concentração económica bastante superior ao nível de desenvolvimento do país, enormíssimos grupos económicos muito poderosos, e o facto desses grandes grupos continuarem poderosos hoje, não condiciona a democracia?
Com excepção da banca, os maiores grupos económicos portugueses de hoje não vêm do condicionamento industrial: estão no sector da distribuição, estão ligados a actividades industriais mais recentes e alargaram-se para os sectores de serviços. Não há uma continuidade entre o mundo económico do salazarismo e o actual. Não significa que não haja problemas económicos gravíssimos de subordinação e da captura, mesmo em alguns casos, do poder político pelo poder económico: nenhuma decisão é tomada no governo e na Assembleia da República que afecte os interesses da banca. Há uma espécie de barreira invisível e mesmo coisas que são de algum bom senso, como por exemplo a maneira como a banca avalia as casas dos empréstimos de habitação, e depois face à ruptura de pagamentos, considera que a sua avaliação não tem nenhum papel em relação ao valor que atribuiu à casa. Estes factos devem ser corrigidos. A banca deve ser responsabilizada pela avaliação especulativa do valor das habitações. Este tipo de coisas é que mostram que, do ponto de vista legislativo, há uma barreira invisível que protege a banca.
Aquilo que lhe estava a colocar é que há duas interpretações extremas sobre o 25 de Abril e o processo revolucionário. Há pessoas mais à esquerda que afirma que havia um poder económico que foi construído no fascismo, que para haver democracia esse poder deve ser derrubado, e que de alguma forma esse poder é dominante novamente nos dias de hoje. Há uma segunda narrativa, mais à direita, daqueles que afirmam que a democracia se fez contra o PREC [Processo Revolucionário em Curso], que garante que havia um poder militar revolucionário, que esse poder realizou as nacionalizações e que para haver democracia isso tem que ser invertido e o Estado retirado da economia. Estes discursos têm sentido?
Eu não penso que as coisas sejam tão a preto e branco. Quando analiso os objectivos do 25 de Abril, sempre considerei que o desenvolvimento dos 3 D [Democratizar, Descolonizar e Desenvolver], do programa do MFA, era algo forçado. Não se pode impor a um regime político que vive do jogo democrático normal uma determinada ideia sobre o que é o desenvolvimento. Já pelo contrário acho que a melhoria das condições de vida é um objectivo fundamental de qualquer regime político e democrático. Eu também acho que foi fundamental terminar as chamadas conquistas da revolução: a reforma agrária, o controlo operário e as nacionalizações, que são resultado de uma situação revolucionária. Que tinham alguns aspectos punitivos, a exemplo que sucedeu em França no pós-Segunda Guerra Mundial: as empresas que tinham colaborado com os alemães foram nacionalizadas dentro desta ideia punitiva. Se for analisar até programas antigos do PCP e do MUNAF e MUD há a ideia dessas nacionalizações punitivas. Mas a verdade é que o período de 1974 e 75 podia ter ido para diferentes caminhos. E um deles era a criação de uma sociedade socialista, sem propriedade privada, com um poder político, que do meu ponto de vista, tinha que ser autoritário para manter essa estrutura de sociedade. Uma das grandes vitórias da sociedade portuguesa foi ter dissolvido esse tipo de antinomias entre 74 e 76. O acto principal não é o 25 de Novembro, como diz o CDS, é um conjunto de decisões: a substituição do Conselho da Revolução pelo Tribunal Constitucional, o fim da tutela dos civis pelos militares, as sucessivas revisões constitucionais, inclusive aquela que permitiu privatizar e criar uma economia de mercado, que é um elemento fundamental da democracia. Agora, isso não me leva a não ver que sobre a economia de mercado há hoje uma perigosa deriva no sentido de transformar aquilo que devia ser um jogo limpo da competição, entre empresas, numa tutela política e financeira em relação às principais decisões económicas. Entretanto os primeiros fautores da crise, que foram a banca e o poder económico e financeiro, são uns dos principais beneficiados, em termos de poder político, dessa mesma crise. É um processo que aconteceu em vários países. Criou-se uma espécie de barreira invisível de aço que faz que nenhuma decisão possa ser tomada contra os interesses do capital financeiro.
Defende que para haver democracia tem que haver economia de mercado, mas não é preciso haver uma maior igualdade entre os cidadãos? Somos dos países mais desiguais da Europa, mas nestes anos de crise isso ainda se reforçou mais.
A desigualdade social é um problema da nossa democracia. Mas na programação não-escrita da democracia não pode estar a igualdade por via administrativa, mas tem de estar o caminho para minorar essas desigualdades. Não se pode dizer que não há democracia quando não há igualdade, mas só pode haver democracia se houver um caminho para a minorar.
Mas esse plano não tem de ser um projecto político?
Tem que ser tudo. A história mostra que muitas vezes as coisas não são bem assim. Há coacções e limites que podem controlar isso.
Quais coacções e limites, basta ver a distribuição de comentadores televisivos, para perceber que este equilíbrio é precário. Parece que ser ex-líder do PSD dá acesso contratual a vir a ser comentador na TV.
Isso não é um problema apenas dos líderes do PSD, é uma característica desta situações, em que toda a gente, dentro deste círculo, tem a vida garantida. Se saírem do círculo passam para as trevas exteriores, mas dentro do círculo estão seguros. Isso tira qualquer risco da actividade política: podem ir para o Parlamento Europeu, para um conselho de administração...
Isso parece a ideia que circulava no tempo da República que a política era uma grande gamela.
É preciso ter cuidado com as generalizações. Mas é verdade que Portugal tem uma elevada percentagem das elites políticas que transitam entre o Estado e as empresas, o Estado e os grandes escritórios de advogados, o Estado e o poder financeiro, e o Estado e a burocracia europeia...
Mas qual seria a alternativa? Eles vão-lhe dizer que medidas que impedissem essa circulação, fariam que apenas aceitassem ser políticos os menos capazes...
Não acho que a política deva ser uma actividade profissionalizada, acho perigosa uma legislação que impeça que no parlamento as pessoas deixem de ter uma profissão, por uma razão muito simples. Essas pessoas deixam de ter capacidade de dizer "não". E a gente vê o efeito que esse tipo de situações tem nas juventudes partidárias: as pessoas que não têm profissão ficam dependentes dos aparelhos partidários para sobreviverem, e perdem a capacidade de dizer que não. Eu sou a favor da constituição de uma comissão de ética, independente das maiorias partidárias, e com poderes reais. Esse tipo de prática existe em vários países e é muito mais eficaz do que o somatório de legislação avulsa sobre incompatibilidades. É isso que os partidos não querem. Não querem uma comissão de ética que lhes escape ao controle.
Há gente que veicula a ideia que a democracia foi construída contra o PREC, concorda?
Não. Na exposição que eu organizo na Assembleia não parto do princípio que haja uma interpretação unívoca do PREC. No período revolucionário realizaram-se quatro eleições: constituintes, legislativas, autárquicas e presidenciais. Só isso já nos levava a olhar de uma outra maneira para os acontecimentos. O PREC é o resultado de um tumulto que era inevitável ao fim de 48 anos de ditadura. A ideia que, depois do dia inicial e limpo, as coisas pudessem ser higiénicas é irrealista. Era inevitável que as coisas fossem complicadas e tumultuárias. Eu não direi que a democracia nasceu do PREC, mas direi que a democracia nasceu no PREC. Não entendo que seja possível, e nesta exposição eu faço o esforço para evitar projectar o politicamente correcto actual sobre o passado. Aquilo que se pretende mostrar na exposição foi que as instituições democráticas e a própria vitória da democracia, mesmo em relação aos protagonistas que eventualmente se batiam por outras soluções, foi construída durante esse tempo: o processo democrático normalizou-se mais tarde que 74 e 76, mas começou a ser construído no PREC. E começou no PREC, porque é evidente, quer se queira quer não, que houve uma certa alegria da liberdade e é inevitável que isso conduzisse a excessos. E não adianta penar sobre isso, de modo geral quem pena com os excessos do PREC é quem não gostou do 25 de Abril. O PREC teve excessos e houve mortos e gente que mandou matar, mas a verdade é que foi naqueles anos turbulentos que nasceu a democracia portuguesa. Chamo a atenção para os processos eleitorais, que decorreram em liberdade, nunca houve nenhuma queixa. Quando as pessoas votaram no PS ou quando anos mais tarde votaram na AD [Aliança Democrática coligação do PSD, CDS, PPM e Renovadores, dirigida por Sá Carneiro] permitindo a primeira mudança significativa do poder no pós 25 de Abril, fizeram-na em liberdade. E essa liberdade nasceu da revolução do 25 de Abril. Em história as revoluções não são higiénicas.
No romance de Lídia Jorge, "Os Memoráveis", sobre o 25 de Abril, fala-se em 5000 protagonistas da revolução. Na sua exposição há um painel com 200. Essa ideia de protagonistas principais não é um regresso a uma história das elites e esquece que numa revolução há uma população inteira nas ruas?
O resumo da história aos protagonistas, resulta muitas vezes numa história mítica: não se pode compreender o que sucedeu sem as pessoas e o povo. Vejamos, então aquelas pessoas que vieram para a rua, mais de 100 mil, quando Humberto Delgado foi ao Porto não tiveram um papel? Certamente que sim! O salazarismo nunca mais foi o mesmo depois desse momento.
Mas de alguma forma não é isso que você faz ao resumir a um painel com 200 pessoas?
A história é feita também com pessoas concretas. O 25 de Abril não foi apenas um golpe militar. Mas existiu esse golpe militar que tem por base reivindicações corporativas e duas franjas de politização contraditórias: uma que existia em certas áreas da Marinha e em homens como Melo Antunes, uma politização que vem beber em muitas coisas, nomeadamente ao Congresso Republicano de Aveiro, e há depois uma outra politizações ligada aos sectores spinolistas que pretendiam a manutenção federalista do império colonial, mas que têm, num certo sentido, ligações à chamada Ala Liberal do regime [onde pontificava Sá Carneiro e Pinto Balsemão]. São dois núcleos politizados. Quando ao golpe militar se sucede uma revolta popular, milhares de pessoas vieram à rua, às vezes com risco. Houve cargas policiais e mortos em frente à sede da Pide. Esses milhares nas ruas imediatamente começaram a condicionar o processo. Eu não acho que essas pessoas saíram porque o PCP ou a CDE as tivessem mandado sair. É um fenómeno, em grande parte, espontâneo, mas esse povo nas ruas começou a condicionar o processo. Não é possível fazer um painel de São Vicente, eu seleccionei 200 nomes para a exposição e no dia em que acabamos o painel reparei que me faltavam o Francisco Martins Rodrigues e o Vítor Cunha Rego, duas pessoas fundamentais. O painel que está na exposição não é o dos autores da democracia, mas as pessoas que tiveram intervenção neste processo tumultuário que se seguiu a uma calma artificial da ditadura.
Portugal é mesmo um país de brandos costumes devido à ditadura?
Quem diz isso não sabe história.
Nós tivemos as guerras liberais em que nos esfolávamos e matávamos alegremente, mas parece que nos tempos de hoje podem ferver-nos em cortes e impostos que nós apenas suspiramos...
É preciso ser-se muito prudente. De um momento para o outro as coisas podem mudar. Há factores como a censura e a cultura anti-conflito, que vigorou durante 48 anos. E uma das coisas mais perigosas nos tempos de hoje são certas ideias do poder que são eficazes: jovens contra velhos, ser velho é ter culpa e estar a roubar os mais novos; os trabalhadores públicos são privilegiados e os privados são as vítimas.
O Estado social é uma conquista das populações mas, por outro lado, ele aparece como uma garantia de um determinado consenso social. Com a destruição deste, podemos dar como adquirida a estabilidade do sistema?
De todo, não. A ideia de que não há direitos adquiridos e que a confiança não é um elemento fundamental na relação com os cidadãos - repare que só há confiança na relação com os credores - leva ao fim da coesão social. Verifica-se o deslaçamento da sociedade. É um discurso de divisão. Não conheço nenhum governo, na história portuguesa, que utilize por razões utilitárias o discurso da divisão social. E isto pode acabar mal

segunda-feira, abril 14, 2014

Quatro falácias da “Segunda Grande Depressão”



13 de Março de 2014 por As Minhas Leituras 

O período desde 2008 tem produzido um conjunto abundante de falácias económicas recicladas, a maioria saiu das bocas dos líderes políticos. Aqui estão as minhas quatro favoritas.
A dona de casa da Suábia. “Deveria ter-se perguntado simplesmente à dona de casa da Suábia”, disse a chanceler alemã, Angela Merkel, depois do colapso de Lehman Brothers em 2008. “Deveria ter-nos dito que não podemos viver gastando mais do que se ganha”.
Esta lógica que parece sensata sustenta actualmente a austeridade. O problema é que ignora o efeito da poupança da dona de casa sobre a procura total. Se todas as famílias cortarem os seus gastos, o consumo total diminuiria e, assim, também diminuiria a procura de mão-de-obra. Se o marido da dona de casa perder o emprego, a família ficaria numa situação pior do que estava antes.
O caso geral desta falácia é a “falácia da composição”: o que faz sentido para cada família ou empresa individualmente não dá necessariamente resultado para o bem de todos. O caso particular que John Maynard Keynes identificou foi o “paradoxo da poupança”: se todos tentarem poupar mais em períodos difíceis, a procura agregada desceria, baixando a poupança total devido à diminuição do consumo e do crescimento económico.
Se o governo tentar cortar o seu défice, as famílias e empresas terão que apertar os cintos e o resultado será uma redução dos gastos totais. Como consequência, contudo, e por muito que o governo corte os seus gastos, o seu défice vai diminuir pouco. Se todos os países perseguirem a austeridade simultaneamente, uma menor procura por bens de cada país provocará um menor consumo nacional e estrangeiro, levando a situação a piorar.
O governo não pode gastar dinheiro que não tem. Esta falácia – muitas vezes repetida pelo primeiro-ministro britânico, David Cameron – apresenta os governos como se eles enfrentassem os mesmos constrangimentos orçamentais que as famílias ou empresas. Mas, os governos não são como as famílias ou empresas. Podem sempre obter o dinheiro de que necessitam emitindo obrigações.
Mas, não terá um governo cada vez mais endividado que pagar taxas de juros mais elevadas e, assim, os custos do serviço de dívida chegarão a consumir todas as suas receitas? A resposta é não: o banco central pode imprimir dinheiro extra suficiente para baixar o custo da dívida do governo. É o que a chamada “flexibilização quantitativa” (“quantitative easing”) faz. Com taxas de juro próximas de zero, a maior parte dos governos ocidentais não podem deixar de se endividar.
Este argumento não é aplicável a um governo sem o seu próprio banco central, caso em que enfrenta exactamente o mesmo constrangimento orçamental da já citada dona de casa da Suábia. É por isto que alguns estados membros da Zona Euro tiveram tantos problemas até que o Banco Central Europeu (BCE) os resgatou.
A dívida nacional representa tributação diferida. De acordo com esta falácia, muitas vezes repetida, os governos podem obter dinheiro emitindo obrigações mas, tendo em conta que as obrigações são empréstimos, estes terão – mais cedo ou mais tarde – de ser reembolsadas, o que só pode ser feito aumentando impostos. E, tendo em conta que os contribuintes assim o esperam, terão que poupar agora para pagar os seus impostos futuros. Quanto mais se endivida o Governo para pagar os seus gastos actuais, mais poupam as pessoas para pagar os impostos futuros, anulando qualquer efeito estimulante do endividamento extra.
O problema com este argumento é que os governos raramente são confrontados com a necessidade de “pagar” as suas dívidas. Podem escolher fazê-lo, mas a maior parte deles limita-se a refinanciá-las emitindo novas obrigações. Quanto maior for a maturidade das obrigações, menos frequentemente devem recorrer os governos aos mercados para obterem novos empréstimos.
Mais importante, quando há recursos não utilizados (por exemplo, quando o desemprego é muito mais elevado do que o normal), a despesa que resulta do endividamento do governo coloca esses recursos em uso. O aumento de receita do governo que isto gera (juntamente com a descida de gastos com desempregados) compensa o endividamento extra sem ter que aumentar impostos.
A dívida nacional é um fardo para as gerações futuras. Esta falácia é repetida tão frequentemente que entrou no inconsciente colectivo. O argumento é de que, se a geração actual gasta mais do que ganha, a próxima geração será forçada a ganhar mais do que gasta para o pagar.
Mas, isto ignora o facto de que os titulares da mesma dívida estarão entre as gerações futuras supostamente sobrecarregadas. Suponhamos que os meus filhos terão que pagar a dívida em que nós incorremos. Estarão em pior situação. Mas, nós estaremos melhor. Isso pode ser negativo para a distribuição de riqueza e rendimento, porque vai enriquecer o credor em detrimento do devedor, mas não haverá encargo líquido para as gerações futuras.
O princípio é exactamente o mesmo quando os titulares de dívida pública são estrangeiros (como no caso da Grécia), embora a oposição política para o reembolso será muito maior.
A economia está cheia de falácias, porque não é uma ciência natural como a física ou química. As proposições na economia rara vezes são completamente verdadeiras ou falsas. O que é verdade em algumas circunstâncias pode ser falso noutras. Acima de tudo, a verdade de muitas proposições depende das expectativas das pessoas.
Considere a crença de que, quanto mais o governo se endivida, mais elevado será o encargo futuro com impostos. Se as pessoas agem com base nesta crença, poupando cada libra, dólar ou euro extra que o governo coloque nos seus bolsos, os gastos extra do governo não terão efeito na actividade económica, independentemente de quantos sejam os recursos não utilizados. O governo deve, então, aumentar os impostos – e a falácia torna-se uma profecia auto-realizável.
Então, como devemos distinguir entre proposições verdadeiras e falsas na economia? Talvez se deva traçar a linha divisória entre as proposições que apenas são válidas se as pessoas esperam que o sejam e as que o são independentemente das crenças a respeito. A afirmação, “se todos nós poupássemos mais em tempos de crise, todos estaríamos melhor”, é absolutamente falsa. Estaríamos todos piores. Mas, a afirmação, “quanto mais os governos se endividam, mais têm que pagar pelo seu endividamento”, por vezes, é verdadeira e, por vezes, é falsa.
Ou, talvez a linha que divide deve separar as proposições que dependem de suposições razoáveis e as que dependem de outras ridículas. Se as pessoas pouparem cada libra extra de dinheiro emprestado que o governo gasta, o consumo não teria um efeito estimulante. Verdade. Mas, estas pessoas existem apenas nos modelos dos economistas.

quarta-feira, abril 09, 2014




A ORIGEM DO MUNDO

Sérgio Telles
psicanalista e escritor

 

http://www.polbr.med.br/ano13/psi0313_arquivos/image001.jpg

 

“A origem do mundo”, de Courbet (*)

 

Sérgio Telles

 

O quadro “A Origem do mundo” tem uma história curiosa à qual se acrescentou um novo capítulo semana passada. A tela foi pintada em 1866 por Courbet, a pedido de Khalil Bey, diplomata turco-egípcio e colecionador de quadros eróticos, que a possuiu até o momento em que, arruinado pelo jogo, teve sua coleção leiloada. Em 1889, o quadro foi encontrado num antiquário pelo escritor francês Edmond de Goncourt e, posteriormente, comprado por um nobre húngaro que o levou para Budapeste, onde escapou da pilhagem realizada pelas tropas russas no final da Segunda Guerra. Trazido de volta a Paris, foi comprado por Jacques Lacan, que o mantinha em sua casa de campo em Guitrancourt, na qual o exibia ritualisticamente a seus convidados. Após a morte de Lacan, a família cedeu o quadro ao Museu d’Orsay dentro das negociações com o estado francês em torno de impostos referentes à transmissão de herança. 

“A origem do mundo” mostra os genitais femininos da maneira mais crua possível. Vê-se um torso da mulher, os seios, o ventre, as pernas afastadas, a frondosa cobertura pubiana e a vagina entreaberta. A novidade recente é que teria sido encontrada a parte superior do quadro, que exibe os ombros e a face da modelo, confirmando hipóteses anteriores que afirmavam ser ela a irlandesa Joanna Hiffernan, que posava também para o grande pintor Whistler, de quem fora companheira e que estaria envolvida afetivamente com Courbet na ocasião em que o quadro estava sendo pintado.

Supondo a veracidade da descoberta, que ainda está em discussão entre os especialistas, podemos conjecturar quem teria seccionado a pintura e por que motivo. O quadro era tido como pornográfico e até muito recentemente mantinha essa conotação. Não é então difícil imaginar que o próprio pintor tenha resolvido mutilar sua obra com o intuito de proteger sua modelo. Ainda em 2009, livros cujas capas o reproduziam foram confiscados pela polícia em Portugal e páginas do Facebook que o exibiam foram retiradas do ar em 2011.  Não deixa de ser surpreendente que, em função do noticiário, sua imagem tenha aparecido abertamente em todos os jornais.

 

 

A trajetória do quadro, vindo dos porões da pornografia para a consagração definitiva nos salões do Museu d’Orsay mostra como a apreciação de uma obra está inevitavelmente atrelada aos valores vigentes no tempo e no lugar de seu surgimento.

Contrariando a representação idealizada do nu feminino, Courbet o apresenta de forma realista. Consta que o grande crítico de arte e ensaísta vitoriano John Ruskin, reverenciado por Proust, jamais superou o choque ocorrido no leito nupcial, ao se deparar com as características hirsutas de sua mulher, tão distantes da lisa e glabra estatuária clássica que lhe era familiar, acontecimento de consequências desastrosas para seu casamento, jamais consumado fisicamente. Mais recentemente, no final dos anos 60, o editor da “Penthouse”, Bob Guccione, causou furor ao mostrar esse detalhe da anatomia feminina, até então pudicamente evitado até mesmo por sua rival, a revista “Playboy” de Hugh Hefner.

Atualmente a forma de dispor o velo pubiano parece estar num outro estágio, evidenciando que, a cada época, o erotismo desenvolve novas estratégias de sedução e formas de acicatar o desejo. Se Courbet, fiel aos costumes de seu tempo, mostra o genital feminino envolto em sua pilosidade natural, constata-se como a moda atual é diferente, na medida em que a depilação é a regra para as mulheres e até mesmo para os homens. Nos dias de hoje, Ruskin não teria tido problemas em sua lua de mel.

As transformações na maneira como a sociedade acolheu “A origem do mundo” mostra como a arte, enfrentando a censura e os preconceitos da época, luta para representar e expor o que é considerado inaceitável, proibido, não representável. Desta forma ela está permanentemente ampliando os limites e as fronteiras daquilo que é permitido pela moral e os costumes.

Trata-se de um serviço inestimável que a arte presta ao conhecimento. Na medida em que simboliza, representa e põe em circulação conteúdos até então excluídos, torna possível o pensar e o refletir sobre eles. Com isso, os aspectos mistificadores, idealizadores, ideológicos – ou seja, a dimensão fantasiosa que acompanha estes conteúdos quando forçados a medrar no escuro – são expostos  à luz, o que lhes retira a conotação assustadora, devolve-lhes a real dimensão e a possibilidade de um tratamento objetivo adequado.

No fundo, estamos falando da liberdade de expressão. O estado tem o dever de proteger os cidadãos e neste sentido, deve exercer a censura (aqui entendida lato censo, como o poder de reprimir e punir) para limitar os impulsos agressivos e sexuais que nos são próprios e que precisam ser coibidos para garantir a vida em sociedade. Mas o exercício da censura é complicado, pois o estado tem seus próprios interesses, que nem sempre coincidem com os da sociedade que deveria representar. Por isso  esta deve estar sempre atenta ao poder do estado, especialmente no que diz respeito às tentativas de reprimir a livre manifestação de opinião.

Pornografia ou arte, o quadro de Courbet mostra como a representação explícita dos genitais mantém inalterado um efeito perturbador sobre nós, como algo arcaico vindo de tempos imemoriais que nos atinge profundamente, sem que possamos evitá-lo.  Ela evoca, sim, a “origem do mundo”, o mistério da vida, o enigma da diferença sexual cujo impacto determinante ocorrido na infância continuará para sempre repercutindo em nossas existências.

A propósito da diferença sexual, em 1989, a artista francesa Orlan, conhecida por suas incursões na body art e outras vertentes da vanguarda, criou sua versão do quadro de Courbet, na qual mostra um torso masculino com o falo em ereção, intitulando-o, significativamente, como “A origem da guerra”. Como tudo que Orlan faz, o quadro e o título convidam à polêmica.  Mais uma vez traz à tona a questão do que deve ser exposto e do que deve ser ocultado. Ao atribuir às mulheres o poder criativo e delegar aos homens a carga da destrutividade, para tanto invertendo o significado convencional do falo enquanto símbolo de  fertilidade, Orlan toma uma posição política de denúncia contra a violência machista ainda vigente mesmo nas sociedades mais evoluídas.

 

(*) Versão ampliada de artigo publicado no Caderno 2 do jornal  “O Estado de São Paulo” em 16/02/2013


 

Você já pleonasmou hoje?


 
 
 
Todos os portugueses (ou quase todos) sofrem de pleonasmite, uma doença congénita para a qual não se conhecem nem vacinas nem antibióticos. Não tem cura, mas também não mata. Mas, quando não é controlada, chateia (e bastante) quem convive com o paciente.
O sintoma desta doença é a verbalização de pleonasmos (ou redundâncias) que, com o objectivo
de reforçar uma ideia, acabam por lhe conferir um sentido quase sempre patético.
Definição confusa? Aqui vão quatro exemplos óbvios: “Subir para cima”,“descer para baixo”, “entrar para dentro” e “sair para fora”.
Já se reconhece como paciente de pleonasmite? Ou ainda está em fase de negação? Olhe que há muita gente que leva uma vida a pleonasmar sem se aperceber que pleonasma a toda a hora.
Vai dizer-me que nunca “recordou o passado”? Ou que nunca está atento aos“pequenos detalhes”? E que nunca partiu uma laranja em “metades iguais”? Ou que nunca deu os “sentidos pêsames” à “viúva do falecido”?
Atenção que o que estou a dizer não é apenas a minha “opinião pessoal”. Baseio-me em “factos reais”para lhe dar este “aviso prévio” de que esta“doença má” atinge “todos sem excepção”.
O contágio da pleonasmite ocorre em qualquer lado. Na rua, há lojas que o aliciam com “ofertas gratuitas”. E agências de viagens que anunciam férias em“cidades do mundo”. No local de trabalho, o seu chefe pede-lhe um“acabamento final” naquele projecto. Tudo para evitar “surpresas inesperadas” por parte do cliente. E quando tem uma discussão mais acesa com a sua cara metade, diga lá que às vezes não tem vontade de“gritar alto”:“Cala a boca!”?
O que vale é que depois fazem as pazes e vão ao cinema ver aquele filme que“estreia pela primeira vez” em Portugal.
E se pensa que por estar fechado em casa ficará a salvo da pleonasmite, tenho más notícias para si. Porque a televisão é, de “certeza absoluta”, a “principal protagonista” da propagação deste vírus.
Logo à noite, experimente ligar o telejornal e “verá com os seus próprios olhos” a pleonasmite em directo no pequeno ecrã. Um jornalista vai dizer que a floresta “arde em chamas”. Um treinador de futebol queixar-se-á dos “elos de ligação” entre a defesa e o ataque. Um “governante” dirá que gere bem o“erário público”. Um ministro anunciará o reforço das “relações bilaterais entre dois países”. E um qualquer “político da nação” vai pedir um“consenso geral” para sairmos juntos desta crise.
E por falar em crise! Quer apostar que a próxima manifestação vai juntar uma“multidão de pessoas”?
Ao contrário de outras doenças, a pleonasmite não causa “dores desconfortáveis” nem “hemorragias de sangue”. E por isso podemos “viver a vida” com um “sorriso nos lábios”. Porque um Angolano a pleonasmar, está nas suas sete quintas. Ou, em termos mais técnicos, no seu “habitat natural”.
Mas como lhe disse no início, o descontrolo da pleonasmite pode ser chato para os que o rodeiam e nocivo para a sua reputação. Os outros podem vê-lo como um redundante que só diz banalidades. Por isso, tente cortar aqui e ali um e outro pleonasmo. Vai ver que não custa nada. E “já agora” siga o meu conselho: não“adie para depois” e comece ainda hoje a “encarar de frente” a pleonasmite!
Ou então esqueça este texto. Porque afinal de contas eu posso estar só “maluco da cabeça”.
(recebido por e-mail)