Da cegueira colectiva
à aprendizagem da insensibilidade
* Mia Couto
Quero, antes de mais saudar
os professores.
Durante anos, fui professor.
E quando digo isto há uma emoção fortíssima que me atravessa. Eu não sei se
há profissão mais nobre do que a de ensinar. E digo ensinar porque existe uma
diferença sensível entre ensinar e dar aulas. O professor no sentido de
mestre é aquele que dá lições.
Os professores que mais me
marcaram na vida foram os que me ensinaram coisas que estavam bem para além
da matéria escolar. Não esqueço nunca um professor da escola primária que um
dia leu, comovido, um texto escrito por ele mesmo. Logo na declaração da sua
intenção nasceu o primeiro espanto: nós, os alunos, é que fazíamos redações,
nós é que as líamos em voz alta para ele nos corrigir. Como é que aquele homem
grande se sujeitava àquela inversão de papéis? Como é que aceitava fazer algo
que só faz quem ainda está a aprender?
Lembro-me como se fosse hoje:
o professor era um homem muito alto e seco e, nesse dia, ele subiu ao estrado
da sala segurando, nos dedos trémulos, um caderno escolar. E era como se ele
se transfigurasse num menino frágil, em flagrante prestação de provas.
Parecia um mastro, solitário e desprotegido. Só a sua alma o podia salvar.
Depois, quando anunciou o
título da redação veio a surpresa do tema que parecia quase infantil: o
professor iria falar das mãos da sua mãe. Éramos crianças e estranhámos que
um adulto (e ainda por cima com o estatuto dele) partilhasse connosco esse
tipo de sentimento. Mas o que a seguir escutei foi bem mais do que um
espanto: ele falava da sua progenitora como eu podia falar da minha própria
mãe. Também eu conhecera essas mesmas mãos marcadas pelo trabalho, enrugadas
pela dureza da vida, sem nunca conhecerem o bálsamo de nenhum cosmético. No
final, o texto acabava sem nenhum artifício, sem nenhuma construção
literária. Simplesmente, terminava assim, e eu cito de cor: “é isto que te
quero dizer, mãe, dizer-te que me orgulho tanto das tuas mãos calejadas,
dizer-te isso agora que não posso senão lembrar o carinho do teu eterno
gesto.”
Havia qualquer coisa de
profundamente verdadeiro, qualquer coisa diversa naquele texto que o
demarcava dos outros textos do manual escolar. É que não surgia ali, em
destacado, uma conclusão moral afixada como uma grande proclamação, uma
espécie de bandeira hasteada. Aquele momento não foi uma aula. Foi uma lição
que sucedeu do mesmo modo como vivemos as coisas mais profundas: aprendemos,
sem saber que estamos aprendendo. Lembro este episódio como uma homenagem a
todos os professores, a esses abnegados trabalhadores que todos os dias
entregam tanto ao futuro deste país.
Comecei por saudar os
professores. Parece que me esqueci dos estudantes. Ou que os coloquei em
segundo plano. Mas não.
Todos somos professores,
mesmo que não o saibamos. Perante os outros, perante os nossos pais, perante
os amigos, perante nós mesmos, com bons ou maus exemplos, com tristes ou
gratificantes lições, todos somos professores. Um dos maiores professores do
nosso tempo é um homem que nunca deu aulas. É um homem que ensinou a sermos
mais humanos. Mais do que isso, é um homem que ensinou a ter esperança num
mundo tão desesperançado. Esse professor de toda a humanidade, de todas as
raças e credos, é um africano. Chama-se Nelson Mandela. A sua vida foi uma interminável
lição. Mandela é hoje uma bandeira mundial não apenas porque foi um político
que dignificou a política, mas porque nos dignificou a todos nós, seres
humanos.
Deixem-me falar de Mandela. Este
homem, que agora está doente e cansado, viveu encarcerado durante vinte e
sete anos. Vinte e sete anos são mais do que o tempo de vida da maior parte
dos presentes nesta sala. Vinte e sete anos de prisão é tempo suficiente para
criar raiva, ódio e insuperáveis ressentimentos. Contudo, este homem
converteu esse potencial negativo em força construtiva e reconciliadora. Um
dos motivos de inspiração de Mandela foi ter encontrado num poema que se
chama “Invictus”. Vou ler esse poema.
Do ventre da noite que tudo
cobre
Negra como o fundo da cova
escura
Agradeço aos deuses de todos
os céus
Por quanto a minha invencível
alma perdura
Ante as garras do cruel acaso
Nem eu tremi, nem o medo me
turvou
Sob o peso da ameaça e da
desumana violência
Eu sangrei mas a minha alma
nunca se curvou
Não importa se a passagem é
estreita
Não importa quantos castigos
devo penar
Eu sou o dono do meu destino
Eu sou o capitão da minha
alma.
Estes versos, meus amigos, foram
uma espécie de suporte moral que deram força a Nelson Mandela. Vezes
infinitas o prisioneiro 46664 da Ilha de Robin regressou a estes versos para
não sucumbir. Como escritor e poeta, dá-me grande alegria saber deste poder
da poesia. Neste caso, há qualquer coisa que deve ser acrescentada.
Na verdade, este poema foi
escrito em 1875. O seu autor não foi um poeta sul-africano, não foi sequer um
poeta africano. Quem escreveu estes versos foi um britânico chamado William
Ernest Henley. Estes versos viajaram para além de séculos e continentes e
iluminaram a esperança de um homem que, em vez de se vitimizar e procurar a
vingança, nos deu uma eterna lição da crença nos outros.
Eu venho falar para a Escola de
Comunicação e Artes. Por isso me demorei nestes episódios. Porque acredito
que a comunicação e a arte são ferramentas de mudança tão importantes como a
política. Mandela fez da política um instrumento de comunicação da verdade.
Ele fez da política uma obra na arte da reconciliação, numa nação dividida
pelo preconceito. Talvez a cultura seja o mais poderoso e duradouro
instrumento de intervenção social. No nosso continente isso é bem claro.
Vejamos um exemplo:
Desde há 50 anos, quando
começaram a acontecer as independências, o nosso continente conheceu mais de
210 presidentes. O desafio que vos faço é o seguinte: digam o nome de 10
(apenas 10) destes dirigentes que se tenham notabilizado como figuras humanas
de referência. Terão dificuldade. Será muito mais fácil enumerarmos artistas
e intelectuais dignos de serem lembrados. E é aqui que a figura de Mandela é
tão importante para nós, africanos. Podemos não nos lembrar de muitos
políticos africanos que nos dignifiquem. Mas o nome de Mandela basta para compensar
toda essa ausência e devolver o orgulho de sermos quem somos.
Caros amigos, vou entrar
agora no tema central desta alocução.
Todos os dias centenas de
chapas de caixa aberta transitam por esta cidade que parece afastar-se do seu
próprio lema “Maputo, cidade bela, próspera, limpa, segura e solidária”. Cada
um destes “chapas” circula superlotado com dezenas de pessoas que se
entrelaçam apinhadas num equilíbrio inseguro e frágil. Aquilo parece um meio
de transporte. Mas não é. É um crime ambulante. É um atentado contra a
dignidade, uma bomba relógio contra a vida humana. Em nenhum lado do mundo
essa forma de transporte é aceitável. Quem se transporta assim são animais.
Não são pessoas. Quem se transporta assim é gado. Para muitos de nós esse
atentado contra o respeito e a dignidade passou a ser vulgar. Achamos que é
um erro. Mas aceitamos que se trata de um mal necessário dada a falta de
alternativas. De tanto convivermos com o intolerável, existe um risco: aos
poucos aquilo que era errado acaba por ser “normal”. O que era uma resignação
temporária passou a ser uma aceitação definitiva. Não tarda que digamos: “nós
somos assim, esta é a maneira moçambicana.” Desse modo nos aceitamos
pequenos, incapazes e pouco dignos de ser respeitados.
O caso dos chapas é apenas um
exemplo, uma ilustração de um processo que eu chamaria de “construção do
inevitável”. E é simples: aos poucos, os passageiros do “chapa” deixam de ser
visíveis. Na nossa sociedade essas pessoas já contavam pouco. É gente pobre,
gente sem rosto, gente que não aparece na TV nem no jornal. Essa gente
surgirá no jornal quando o “chapa” se acidentar. Mas aparecerá sem voz e sem
nome. Um simples número para se contabilizar feridos e mortos. Em
contrapartida, outras coisas ganharam brilho na nossa sociedade. Por exemplo,
adquiriram toda a visibilidade os carros de luxo de uma pequena minoria.
Deixamos de ver os “chapas” mortais, mas estamos atentos aos sinais de
ostentação dessa minoria.
O assunto que quero abordar
convosco hoje é esta operação que banaliza a injustiça e torna invisível a
miséria material e moral. Esta vulgarização faz perpetuar a pobreza e faz
paralisar a história. Saímos todos os dias para a rua para produzir riqueza
mas regressamos mais pobres, mais exaustos, sem brilho, nem esperança. De
tanto sermos banalizados pelos outros, acabamos banalizando a nossa própria
vida.
Estamos perante uma espécie
de formatação mental e moral. A mensagem é a seguinte: querem dizer-nos as
nossas doenças sociais são incuráveis. Resta-nos viver de remendos e
expedientes.
Visitou-me um escritor amigo
da Nigéria. Ele percorreu as cidades de Moçambique e ligou-me de Pemba. A
primeira coisa que ele disse: Estou maravilhado! Vocês têm estações de
gasolina a funcionar! O seu espanto espantou-me a mim. Principalmente porque
esse assombro provinha de um cidadão da Nigéria, o maior produtor de petróleo
de África. Só depois entendi. O que passa na Nigéria – depois de 50 anos de
exportação de petróleo - é que as cidades nigerianas não possuem aquilo que
para nós é comum: estações de gasolina vendendo gasolina. As bombas de
combustível naquele país estão quase todas fechadas e a gasolina é vendida em
garrafas e jerricans nos passeios públicos. Para alguns esse é um processo
natural em África. Mas não é. O que sucedeu foi o seguinte: o governo
subsidiou os preços dos combustíveis mas não foram os mais desfavorecidos que
lucraram mais. Foi uma parte da elite nigeriana que se apoderou dos circuitos
formais e desviou para os mecanismos informais a distribuição e venda do
combustível. Uma vez mais, os ricos tornaram-se ainda mais ricos. Mas não é a
questão politica que eu quero trazer aqui. A questão é que, para o cidadão da
Nigéria, aquele sistema de venda, à maneira do dumba-nengue, se tornou
normal. Ver bombas de gasolina a funcionar numa nação bem mais pobre como é
Moçambique foi, para ele, um motivo de surpresa. Eu vejo muito africanos
proclamarem que os mercados informais são a única maneira que África sabe
fazer comércio. Que apenas nas barracas sabemos comer e beber. É mentira. A
dumba-nenguização da economia é uma estratégia escolhida para fugir dos
impostos, para escapar das obrigações para com o património público. Quando o
meu amigo nigeriano voltou a Maputo ele disse-me o seguinte:
- A minha surpresa não foi
tanto o que eu vi em Moçambique. Foi sim o que já não sabia ver na Nigéria.
O principal aliado dos
tiranos é a cultura da aceitação. Talvez alguns de vocês sabem que sou um dos
autores do Hino Nacional. Quando entregamos o Hino para aprovação na Assembleia
da Republica nós não podíamos imaginar que alguns deputados se sentissem
incomodados com a passagem da letra que diz: Nenhum tirano nos irá
escravizar. É claro que a letra não fala do presente. Mas um hino é feito
para durar. E quem pode garantir que um candidato a tirano não assaltará a
nossa futura história? O melhor modo de prevenir esse risco não é apenas
consolidar a democracia política. É investir numa cultura viva, numa
cidadania de construção do futuro. O que me interessa falar aqui, numa Escola
de Arte e Cultura é a dimensão cultural das nossas pequenas e grandes
misérias.
A invocação da chamada
“africanidade” é uma das armadilhas mais usadas pelos tiranos. No Malawi
atacaram e rasgaram a roupa de mulheres pelo simples facto de andarem de calças.
Mulheres de calças não é uma coisa africana – foi o que invocaram os
agressores. Em nome de África se agrediram e mataram pessoas apenas porque
eram homossexuais. Em nome da pureza africana se continua a impedir que,
apenas por serem do sexo feminino, milhares de crianças não prossigam os seus
estudos. Em nome de África se cometem os maiores crimes contra África. O
nosso continente é feito de passado e tradição, sim. Mas é feito de
modernidade. É feito de mudança. Como todos os outros continentes.
As dinâmicas de mudança
confrontam-se com uma identidade feita de passado e tradição. Tudo isto tem a
ver com o processo da construção do inevitável. Esse processo envolve o
mecanismo da acomodação e o mecanismo da invisibilidade. A acomodação tem
várias facetas. Sabemos que está errado, mas nada fazemos. Porque temos medo.
Porque achamos que não tem a ver connosco. Ou porque fazemos cálculos. É
melhor calar e ser promovido. É melhor recolher uns magros favores em troca
do nosso silêncio e da nossa cumplicidade.
O mecanismo da invisibilidade
foi tratado por José Saramago no livro O ensaio sobre a cegueira. Nós estamos
doentes, não porque os olhos tenham alguma deficiência, mas porque deixamos
de saber olhar. Deixamos de querer ver. E deixamos de nos ver a nós mesmos.
No fundo, este é o desfecho desse processo de alienação. Tornamo-nos cegos.
Quem não vê, aceita que outros lhe digam como é o mundo.
Eu rabisquei uma lista de
fenómenos sociais que se tornaram invisíveis em Moçambique. A lista é bem
extensa. Mencionarei apenas de alguns.
A violência contra os mais
fracos
O primeiro desses fenómenos é
a violência. Dizemos com frequência que somos um povo pacífico. Isso é
verdade. Mas os povos todos, do mundo, são pacíficos por natureza. O que muda
é a sua história. Assim, é verdade que somos um povo pacífico, mas também é
verdade que foi esse povo pacífico que fez uma guerra civil que matou cerca
de um milhão de pessoas. A guerra terminou em 1992, e essa data é talvez a
mais importante da nossa história recente, depois da Independência Nacional.
Terminou o conflito militar, mas não terminaram outras guerras silenciosas,
invisíveis e perversas.
Hoje somos uma sociedade em
guerra consigo mesma. Os alvos dessa guerra são sempre os mais fracos.
Estamos em conflito com as mulheres, com as crianças, com os velhos, estamos
em guerra com os pobres, com aqueles que não têm poder. Somos uma sociedade
obcecada pelo Poder. Quem não tem poder é como quem circula na traseira do
chapa: não existe. Tudo tem uma leitura política, o mais pequeno detalhe é um
recado, uma definição de hierarquias. Quem chega primeiro à reunião, onde se
senta, quem não comparece à cerimónia, com que carro chegou, de quem se faz
acompanhar, tudo isso são sinais de poder. Nas ruas sou chamado de patrão,
sou chamado de “boss”, porque a minha cor da pele é tida como um sinal de
Poder. O vendedor de viaturas insurgiu-se com a escolha de um carro que eu
queria comprar. Deixe que escolho um carro compatível com o seu
estatuto.
Estamos em guerra connosco
mesmos e o primeiro desses alvos é curiosamente uma maioria: as mulheres. Em
Moçambique há mais um milhão de mulheres que homens. Mas ao nível das
percepções, os homens dão pouca importância a essa verdade. Eles são chefes,
os donos, e olham as mulheres como uma pertença privada. As mulheres, por
outro lado, ainda pedem licença para existir. A maioria das mulheres que são
objecto de violência dos maridos acha que isso não é um crime. Acham normal,
acham natural. Ser agredida faz parte do seu destino, da sua imutável
natureza.
E conto-vos três episódios
reais, que retirei da nossa imprensa apenas nas últimas semanas:
Em Cabo Delgado 17
homens violaram uma mulher que se atreveu a atravessar o acampamento onde se
praticavam os rituais de iniciação. Da parte das autoridades locais houve uma
inaceitável passividade. Foi necessária insistência da família e de ONGs para
que houvesse uma insuficiente resposta.
Em Manica dois jovens violam
sexualmente uma mulher no sétimo mês da gravidez.
Em Tete um homem mata a
criança de dois meses e esfaqueia gravemente a mulher porque a meio do dia
ele chegou a casa e a mulher recusou fazer sexo com ele. O jornalista da
televisão que entrevista o confesso culpado sugere uma quase legitimidade do
ato ao perguntar: “o senhor devia estava necessitado não é verdade?”.
Reclamamos a violência da
rua, mas é mais provável uma mulher ser agredida dentro de casa do que fora
de casa. É mais provável uma criança ser agredida e violentada no espaço da
sua família. Esta tendência não sucede apenas em Moçambique, mas no mundo. As
estatísticas são reveladoras e assustadoras: cerca de 70 por cento dos actos
de violência contra a mulher acontecem dentro da casa. Mais de 60 por cento
dos assassinatos de mulheres são cometidos pelos seus companheiros ou
ex-companheiros. Em todo o mundo, uma em cada três mulheres ou já foi ou irá
ser agredida ou violentada. Não é pois Moçambique que é afectado de modo
particular. O que sucede é que para nós essa violência é legitimada por
razões que se dizem culturais. Nós ainda banalizamos muito facilmente. É
ainda prevalecente a ideia de que a mulher é que é culpada, porque ela é quem
provoca a violência. Ainda achamos que este assunto não tem a ver connosco,
que é para ser denunciado pelas ONGs. Isto é, desresponsabilizamo-nos. Mesmo
sendo mulheres, achamos que este assunto tem a ver com os outros. Mesmo sendo
homens, que têm mães, irmãs e filhas, achamos que isto não tem nada a ver
connosco.
OUTRA GUERRA - AS VIUVAS
Sugiro que leiam o livro de Fabrício
Sabat, chamado As viúvas da minha terra, para ficarem com uma ideia do crime
generalizado que é cometido contra mulheres que vivem um momento dramático da
sua vida. E nesse exacto momento de fragilidade, são assaltadas pelos
próprios parentes. Levam-lhes os bens, os filhos, o sossego.
CASO DAS VELHAS
Acusadas de feitiçaria,
roubaram-nas durante a vida, fizeram sumir a sua infância e juventude e, no
final, roubaram a possibilidade de uma velhice tranquila, usufruída com os netos
e as lembranças. Está longínqua a imagem de África como um lugar especial
porque os velhos são respeitados.
GUERRA CONTRA OS GAYS E AS
LÉSBICAS
Moçambique nem é dos países
menos tolerantes. Há países que consideram formal e legalmente um crime o simples
facto de ser ter uma orientação sexual diferente. Mesmo assim, há entre nós,
uma enorme intolerância.
CASO DOS DOENTES MENTAIS
Nós estamos tão ocupados com
outras doenças que esquecemos que não é apenas o HIV SIDA que tem implicações
do ponto de vista do estigma social. As doenças mentais são outro mal não
visível. Não creio que existam estatísticas da prevalência de doenças mentais
em Moçambique. Mas a média em África é de 14 por cento da população.
ALBINOS
Vou contar-vos um episódio
real. Conheci um pedreiro que chamarei apenas por Fabião, que certa vez
executou uma obra para minha casa. Um dia, uma moça albina veio à minha porta
pedir água. O pedreiro desceu do escadote onde trabalhava para me dar
conselhos: “é melhor não dar, ou usar um copo que depois deita fora”. Quando
lhe perguntei porquê, ele respondeu: “aquela tjidajna é alguém que tem muitos
problemas”. E reproduziu os habituais mitos e preconceitos sobre os albinos.
No final confessou: “ainda bem que na minha família nós não temos disso».
Passaram-se anos e a semana
passada o mesmo Fabião ligou para mim a perguntar se era possível entrar sem
convite na exposição “Filhos da Lua”, na Fortaleza de Maputo. Ele ouviu na
rádio que a exposição tinha por tema “os albinos” e estava muito interessado
em levar a sua filha a esse evento. “É que a minha filha nasceu albina.”
Fabião não podia nunca imaginar ser pai de uma tjidjana. Mas foi. E ele
agora, por amor a essa menina, queria enfrentar junto com ela os preconceitos
que ele mesmo guardava dentro de si. Chamei Fabião e ofereci-lhe que levasse
para a sua filha dois discos. Um de Salif Keita, outro do nosso Aly Fake. E
disse “esses são os melhores copos de água. Refrescam a alma”.
Muitas vezes pensamos que
essas diferenças vivem fora de nós. A diferença está dentro de nós. Um em
cada 35 moçambicanos é portador do gene do albinismo. Um em cada 35 pessoas é
portador dessa gente. Nenhum de nós sabe à partida se poderá ser pai ou mãe
de uma criança albina.
GUERRA COM OS MORTOS
Até aqui falei de conflitos
com mulheres, crianças, velhos. Mas todos esses segmentos sociais são
compostos por gente viva. O mais triste é que a nossa sociedade entrou em
guerra com os seus próprios mortos. Este é o sintoma mais grave da nossa
patologia social: passamos a maltratar até os nossos mortos. O que acontece
nos nossos cemitérios é um atentado contra os mais básicos princípios morais.
As famílias enterram os seus entes queridos e são obrigadas a retirar o mais
ínfimo valor que acompanhe o falecido. Sabem que no dia seguinte, o caixão
foi assaltado, o morto foi despido. As próprias jarras de flores são
quebradas antes de serem colocadas para prevenir que sejam roubadas e
vendidas. Não contentes em assaltarem os vivos, há gangs que se
especializaram em roubar os mortos. Nem depois do último suspiro estaremos a
salvo dos ladrões.
Meus amigos
Eu disse que estávamos em
guerra connosco mesmos. Esta guerra doméstica compõe-se de duas violências. A
violência daqueles que agridem. E a violência dos que se calam. Marthin
Luther King disse O que me entristece não é apenas o clamor dos homens maus.
É o silêncio dos homens bons.
A lista das nossas guerras
domésticas estende-se por mais domínios. Os exemplos que escolhi ilustram o facto
de que não somos a sociedade pacificada que pretendíamos ser. Há um percurso
enorme a percorrer e esse caminho é sobretudo uma viagem interior. Essa
viagem só acontecerá se vocês souberem ver, souberem não aceitar. Tudo o que
aqui disse pode ser resumido em dois textos pequenos de autores alemães.
Peço-vos que escutem. O primeiro é uma parábola e diz o seguinte:
“Um dia, vieram e levaram o
meu vizinho, que era judeu. Como não sou judeu, não me incomodei. No dia
seguinte, vieram e levaram o meu outro vizinho, que era comunista. Como não
sou comunista, não me incomodei. No terceiro dia, vieram e levaram o meu
vizinho católico. Como não sou católico, não me incomodei. No quarto dia,
vieram e levaram-me mim. Nessa altura, já não havia mais ninguém para reclamar.”
O segundo texto é um apelo na
forma de verso, escrito pelo dramaturgo Bertolt Brecht:
"Nós pedimos-vos com
insistência:
Nunca digam - Isso é natural.
Diante das barbaridades de
cada dia,
Numa época em que corre
sangue
Num tempo em que a arbitrariedade
tem força de lei,
Num momento em que a
humanidade se desumaniza
Não digam nunca: Isso é
natural
Se aceitamos as coisas como
naturais
este nosso mundo torna-se
imutável
Caros amigos
O nosso tempo também está em guerra
contra os jovens. À nossa frente, e não falo apenas de Moçambique, se
anunciam tempos difíceis. À nossa frente está um futuro magro em que parece
que apenas alguns podem caber. O que nos sugerem é que briguemos uns com
outros para ver quem cabe nessa estreita porta. Mas talvez seja possível
criar um outro futuro mais amplo.
Vão ser assediados. Por
forças políticas que estão mais preocupadas com o Poder do que com a
resolução efectiva dos problemas. Por forças que se lembram dos jovens quando
se trata de colher votos. Por forças que falam aos jovens, não falam com os
jovens.
Vocês são jovens. Ser jovens
é uma condição inerente, que se exerce sem esforço. Mais do que jovens, sejam
diferentes. Tragam para o nosso tempo o inesperado, o que é novo, o que é
historicamente produtivo.
Uma nova classe está povoando
o poder político em Moçambique. São os papagaios. Reproduzem o discurso dos
chefes. A maior parte deles são jovens. Mas são jovens de alma envelhecida.
Os papagaios podem pensar que o seu futuro está assegurado porque olham o
país como se fosse um aviário. Mas o nosso futuro como nação não se constrói
senão com ousadia, com vitalidade e um infinito respeito pelos outros.
Ficamos muitas vezes à
espera, ficamos à espera que o governo faça. Temos medo de tomar iniciativa.
Achamos arriscado. Não agimos porque dizemos que faltam recursos, falta
orçamento, falta autorização do chefe. Mas existem lições que parecendo
pequenas podem tocar alguém para toda a vida.
O professor primário que leu
uma redacção sobre as mãos calejadas de sua mãe não imaginava que estaria
marcando para sempre um aluno seu. O poeta William Henley não poderia
imaginar que versos seus poderiam sustentar, cem anos mais tarde, a vontade
de lutar de um africano que iria mudar o destino de milhões de pessoas.
Fazemos o que fazemos não
porque sejam grandiosas iniciativas mas porque necessitamos mudar as coisas e
melhorar o mundo. Fazemos o que fazemos porque, como diz o poema, nós
queremos ser donos do nosso destino e capitães da nossa alma colectiva.
*Fonte: texto gentilmente
enviado pelo escritor Andes Chivangue em 14 de março de 2012.
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«Sabes o que me lembra este céu? Mais ou menos: a guerra dos astros. Tal e qual. A guerra dos mundos. Um sol maléfico, que tenta destruir a maquete, e sete planetas menores que tentam defendê-la.» [Finisterra, Carlos de Oliveira]
quinta-feira, maio 30, 2013
Da cegueira colectiva à aprendizagem da insensibilidade
terça-feira, maio 28, 2013
segunda-feira, maio 13, 2013
Poema de agradecimento à corja
Poema de agradecimento à corja (Joaquim Pessoa)
Obrigado, excelências.
Obrigado por nos destruírem o sonho e a oportunidade de vivermos felizes e em paz.
Obrigado pelo exemplo que se esforçam em nos dar de como é possível viver sem vergonha, sem respeito e sem dignidade.
Obrigado por nos roubarem. Por não nos perguntarem nada. Por não nos darem explicações. Obrigado por se orgulharem de nos tirar as coisas por que lutámos e às quais temos direito.
Obrigado por nos tirarem até o sono. E a tranquilidade. E a alegria.
Obrigado pelo cinzentismo, pela depressão, pelo desespero.
Obrigado pela vossa mediocridade.
E obrigado por aquilo que podem e não querem fazer.
Obrigado por tudo o que não sabem e fingem saber.
Obrigado por transformarem o nosso coração numa sala de espera.
Obrigado por fazerem de cada um dos nossos dias um dia menos interessante que o anterior. Obrigado por nos exigirem mais do que podemos dar.
Obrigado por nos darem em troca quase nada.
Obrigado por não disfarçarem a cobiça, a corrupção, a indignidade. Pelo chocante imerecimento da vossa comodidade e da vossa felicidade adquirida a qualquer preço.
E pelo vosso vergonhoso descaramento.
Obrigado por nos ensinarem tudo o que nunca deveremos querer, o que nunca deveremos fazer, o que nunca deveremos aceitar.
Obrigado por serem o que são.
Obrigado por serem como são. Para que não sejamos também assim.
E para que possamos reconhecer facilmente quem temos de rejeitar.
Joaquim Pessoa
Obrigado, excelências.
Obrigado por nos destruírem o sonho e a oportunidade de vivermos felizes e em paz.
Obrigado pelo exemplo que se esforçam em nos dar de como é possível viver sem vergonha, sem respeito e sem dignidade.
Obrigado por nos roubarem. Por não nos perguntarem nada. Por não nos darem explicações. Obrigado por se orgulharem de nos tirar as coisas por que lutámos e às quais temos direito.
Obrigado por nos tirarem até o sono. E a tranquilidade. E a alegria.
Obrigado pelo cinzentismo, pela depressão, pelo desespero.
Obrigado pela vossa mediocridade.
E obrigado por aquilo que podem e não querem fazer.
Obrigado por tudo o que não sabem e fingem saber.
Obrigado por transformarem o nosso coração numa sala de espera.
Obrigado por fazerem de cada um dos nossos dias um dia menos interessante que o anterior. Obrigado por nos exigirem mais do que podemos dar.
Obrigado por nos darem em troca quase nada.
Obrigado por não disfarçarem a cobiça, a corrupção, a indignidade. Pelo chocante imerecimento da vossa comodidade e da vossa felicidade adquirida a qualquer preço.
E pelo vosso vergonhoso descaramento.
Obrigado por nos ensinarem tudo o que nunca deveremos querer, o que nunca deveremos fazer, o que nunca deveremos aceitar.
Obrigado por serem o que são.
Obrigado por serem como são. Para que não sejamos também assim.
E para que possamos reconhecer facilmente quem temos de rejeitar.
Joaquim Pessoa
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